Trata-se de um óleo sobre tela proveniente do ano 1915 e irrompe também agora com uma força inusitada: basta que possamos transgredir tempo e espaço.
Egon Schiele viveu entre 1890 e 1918: 28 anos intensos, a avaliar pela qualidade das pinturas que nos legou. Existe uma sensação de sujidade muito evidente nas suas imagens que retratam corpos, corpos esses sempre em queda, sempre em vibração, sempre em abertura, por dentro e para fora. Por dentro porque dá conta, magistralmente, da nossa encarnação; para fora porque nos fazem participar nesse abismo que é um ser humano. O facto de ter sido olhado com alguma desconfiança, pela nudez, pela audácia, até pela atitude algo pornográfica, não impediu que Klimt o tivesse protegido e instigado a expor. Retratou-se repetidamente, sem cair no narcisismo, a cru. E deixou-nos uma procissão de mulheres muito expressivas. Hoje detenho-me num abraço muito específico, entre “A Morte e a Donzela”, um motivo que se radica nas Danças Macabras medievais e que se difundiu no Renascimento, para no Romantismo ser recuperado.
Muito se discursa sobre a capacidade de um abraço proporcionar bem-estar, já que faz associar as pessoas, as quais liberta no mesmo gesto em que as aproxima, reverberando uma energia que se prolonga qual onda magnética. Depois de uma pandemia global tão severa, em que o contágio que lhe está associado exigiu que se interpusesse um intervalo, quase incomensurável, entre os seres humanos, e digo incomensurável porque a distância exigida representa também um acto simbólico numa espécie de rasura, digamos que a possibilidade de abraçar o/a semelhante se afigura um acto realmente libertador. Mas “A Morte e a Donzela” é outra coisa: fala-nos do gérmen da desaparição que trazemos, como um sinal de fogo, alojado na carne. As Danças Macabras remetem-se ao período medieval e sintetizam a angústia e o desespero provindos de tempos apocalípticos, em que a tríade guerra-peste-fome operou impiedosamente, para o que se forjou uma resposta visual propedêutica. Tempos como os de agora.
Um abraço entre a Morte e a Donzela é, portanto, uma metáfora para a brevidade da vida, que demonstra como a morte é uma real cilada à espera atrás da esquina, ou dormente nos braços mornos de uma mulher jovem, ingénua, virginal, que pode muito bem aguardar a iniciação: seja nos mistérios da sexualidade, seja na insondável e abismática, portanto, relação entre a vida e a morte. Uma mulher jovem, ingénua, virginal é sempre promessa, nomeadamente, pela capacidade de gerar: fruto do ventre, também se pronuncia. Este abraço tão especial transmite-nos, penso, e tão expressiva e desamparadamente: a passagem do tempo. O tempo.