“As Portas do Paraíso”

Vindas de Quatrocentos, foram assim denominadas por Miguel Ângelo que demonstrou dessa forma a admiração pelo trabalho, tanto meticuloso, como fantástico, de Lorenzo Ghiberti.

São compostas por dez painéis, com cercadura envolvente e medalhões a servir de enquadramento, em bronze, tendo ocupado mais de vinte anos da vida de Lorenzo Ghiberti: escultor, arquitecto, pintor, escritor, historiador de arte. Conferem a identidade à Porta Este do Baptistério de São João, em Florença, e afirmam-se enquanto momento-chave da inauguração do Renascimento: ao mesmo tempo que bebem estética e exemplarmente da Antiguidade Clássica, representam cenas do Velho Testamento. A obra de arte foi guardada em 1943 durante a 2ª Guerra Mundial; reposta depois, acabaria por ser danificada pelas inundações de 1966 e substituída por uma cópia em 1990; hoje resplandece. Ghiberti iniciou-se na oficina do ourives Bartolo di Michele e, na verdade, este seu trabalho – “As Portas do Paraíso”, manifesta um sentido muito apurado do detalhe e do equilíbrio.

Já os motivos que responsabilizam esta obra por vir enquanto momento-chave da inauguração do Renascimento radicam, como não podia deixar de ser, e essencialmente, no uso de uma perspectiva que transmite a sensação de profundidade, de escala relacional e relativa, bem como do realismo acentuado manifesto no visível. Ainda que esta obra de arte seja por todos os motivos fantástica finca-se, pulsando delicadamente, nas bordas da realidade. Podemos, hoje, recuperar o sentimento de assombro gerado em Quatrocentos perante tal fantasia? Repare-se que se trata aqui de uma obra de arte que serve de pórtico: a intensa comoção, quiçá, provocada pelos dez painéis é uma passagem, do exterior – mundano, para o interior – sagrado; sendo um baptistério, corrobora-se ainda a questão da iniciação. 

Os dez painéis são autênticas pinturas em relevo e, estando de frente para o exterior, vêm num campo expandido de experiência, abrem-se: apesar de captarem a atenção de cada transeunte, de cada cristão, de cada iniciado ou iniciado em potencial, ou seja, apesar de serem dotados, cada um, de um olho em perspectiva, abrem-se e expandem-se. É diferente, portanto, a obra permanecer no exterior ou no interior do edifício: para o primeiro caso, existe um movimento de dentro para fora, para o segundo, outro de fora para dentro, apesar, claro está, da reversibilidade inerente à experiência proporcionada por uma obra de arte. Estando no exterior, convida e resgata; estando no interior, enlaça e resgata. Podemos certamente compreender, apesar de se interporem séculos de distância, o assombro de Miguel Ângelo ao deparar-se com a porta este do Baptistério de São João, em Florença: teremos, todavia, as palavras certas para o actualizar? Porque: onde está, hoje, o Paraíso?

© Imagem de entrada: “Os Portões do Paraíso

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