Sonho: abrir o caminho do prado à mesa é o propósito do projeto “Receitas que Contam Histórias – Gastronomia e Vinhos das Aldeias Históricas de Portugal”. Missão: criar uma carta gastronómica gerada a partir do receituário local a implementar nos restaurantes em volta das aldeias.
Arquitetadas entre os dois maiores rios ibéricos que nascem em Espanha e cruzam Portugal de este a oeste, o Douro e o Tejo, ao longo de uma linha que viria a ser fronteira entre os dois países, o que demonstra bem a sua importância de outrora, encontramos as 12 Aldeias Históricas de Portugal. Almeida, Belmonte, Castelo Mendo, Castelo Novo, Castelo Rodrigo, Idanha-a-Velha, Linhares da Beira, Marialva, Monsanto, Piódão, Sortelha e Trancoso são porventura mais (re)conhecidas como destinos de história e natureza, no entanto, há muito mais para descobrir nestas terras cheias de energia onde diversas forças funcionam de forma integrada.
Além das paisagens, dos lugares e dos seus monumentos, nas Aldeias Históricas de Portugal podemos percorrer a GR 22 – a maior rota na Europa de trilhos para caminhadas e percursos de bicicleta, com cerca de 600 km; assistir ao Ciclo de Eventos 12 em Rede – Aldeias em Festa!. Em 2018, receberam a certificação BIOSPHERE DESTINATION e, em 2020, foram o primeiro destino em Portugal a criar o “Manifesto do Turista Responsável”, lembrando aos seus visitantes a importância do respeito pela natureza.
Imbuído neste contexto de turismo dinâmico e responsável nasce, a partir da cultura local assente numa biodiversidade sustentável – económica, ecológica e social –, o projeto “Receitas que Contam Histórias – Gastronomia e Vinhos das Aldeias Históricas de Portugal”.
Gastronomia com rosto. As pessoas são o mais importante do território.
“As pessoas que me abriram as suas casas, sentaram-me na cabeceira da mesa.” Recordo a frase de Olga Cavaleiro, responsável pela construção da Carta Gastronómica das Aldeias Históricas de Portugal, desde a primeira vez que falámos deste projeto. Estas palavras, simbolizam o retrato do desígnio “Receitas que Contam Histórias – Gastronomia e Vinhos das Aldeias Históricas de Portugal”, uma iniciativa da Associação Aldeias Históricas de Portugal, que procura recuperar a extraordinária cultura gastronómica das aldeias, sem esquecer os vinhos da região.
Os primeiros passos no terreno junto de quem lá (de)mora. Calcorreando cada uma das 12 Aldeias Históricas de Portugal, Olga Cavaleiro falou com as pessoas, no lugar onde vivem e, muitos, provavelmente nasceram, para saber o que é que cozinhavam e comiam em casa, “roubando-lhes” as histórias, que passaram de geração em geração e que o crivo do tempo se encarregou de selecionar, transformando muitas dessas histórias em receitas.
Cozinhar é uma arte exclusiva da humanidade. Os outros animais não cozinham o que comem. No entanto, a arte de cozinhar tem diferenças de lugar para lugar. “A presença de água, a fertilidade que vem da montanha alimenta os rios. A altitude e a temperatura também influenciam. A geografia importa e molda a alma de um povo. O lugar faz os homens. A montanha transforma a pessoa”, sublinha Olga Cavaleiro.
Às conversas adicionou-se a investigação da documentação histórica disponível e o resultado foi a criação de uma Carta Gastronómica das Aldeias Históricas de Portugal, que será publicada em livro em meados deste ano, de 2023. A partir deste documento, foram elaboradas as ementas para o projeto “Receitas que Contam Histórias”. Contextualizadas no conjunto das práticas imateriais associadas à alimentação, estas ementas respeitam o sentido cultural e simbólico das respetivas comunidades, transmitindo algumas das histórias locais.
O processo, que se pretende colaborativo, já agrega mais de três dezenas de produtores de vinho, de azeite, de queijo e de fruta, e os habitantes e visitantes das Aldeias Históricas de Portugal já podem (a)aprovar esta carta gastronómica em 14 restaurantes do território: Casa do Castelo, Belmonte Sinai Hotel, Casa da Esquila, Casa da Cisterna, Taverna da Matilde, Colmeal Countryside Hotel, Pedra Nova- Turismo de Aldeia, O Pecado (Convento do Seixo Fundão), Cova da Loba, Dom Gabriel, D’Aqui e d’Acolá, D’aqui e D’acolá-Pardieiros, Monsanto GeoHotel Escola e Pé de Cabra-Mercearia Moderna.
Cada menu é composto por couvert, entrada, sopa, prato principal de carne ou peixe, sobremesa e uma gulodice final. Os vinhos sugeridos com os menus são servidos a copo.
Este projeto só faz sentido com o envolvimento de todos. Por isso, lançamos o convite para viajar por cada uma das aldeias com vagar. Não é preciso nem aconselhável visitar todas de uma vez. Dê a cada aldeia o tempo necessário para se revelar e parta à descoberta da cozinha de outrora, provavelmente diferente da perceção que tem. Foi o que fizemos.
Com quantos defeitos é feito um queijo perfeito?
Partimos à descoberta das Aldeias Históricas de Portugal em meados de novembro, com o alavão a decorrer. O mesmo é dizer que estávamos em plena época de produção de queijo de ovelha. Começa por altura do advento do outono e vai até ao final da primavera, nos meses mais frescos, quando os animais produzem leite. “O queijo gosta de frio”, comenta Célia Silva, engenheira zootécnica de formação e queijeira de profissão. À frente da empresa familiar Casa Agrícola dos Arais, desde 2014, mantém a tradição de produzir queijo, a qual que já vem do tempo dos avós, Célia recebe-nos e explica tudo o que envolve a feitura do queijo Serra da Estrela DOP, com uma paixão que nos faz antever que dali só podem sair coisas boas. Para começar, saliente-se que uma grande parte do leite de ovelha vem da casa. A família tem um rebanho de quase três centenas de ovelhas da raça autóctone Bordaleira Serra da Estrela. O restante é adquirido a mais três produtores vizinhos, o que perfaz mais de 1000 ovelhas criadas localmente, o que dá uma média diária de 260 litros de leite, quantidade suficiente para produzir mais de 100 queijos por dia e alguns requeijões.
Os rebanhos pastam à volta da aldeia de Vide-Entre-Vinhas, fator essencial para a sua diferenciação, dado que a alimentação dos animais tem forte influência na qualidade da gordura e da proteína, elementos fundamentais para a produção do queijo.
O leite, recebido pela manhã, é aquecido em banho-maria a 26/27 °C. Adiciona-se o sal e o cardo, que faz o leite coalhar ao alcançar sensivelmente os 29 °C. O cardo utilizado no fabrico do queijo, com leite cru e não pasteurizado, é, também ele, de produção própria.
“Antes era rentável e hoje não é” é a resposta rápida de Célia Silva quando lhe perguntam para apontar as diferenças entre a produção no tempo dos avós e agora. “Os custos de produção e as exigências têm aumentado substancialmente e o preço de venda é o mesmo.”
O Queijo Serra da Estrela DOP, um dos queijos mais conhecidos pelos portugueses, é um produto endógeno ligado intimamente à serra. A sua produção era uma atividade permanente das gentes serranas como fonte de ingestão de proteína no inverno e para matar a fome.
O Queijo Serra da Estrela é um queijo de pasta semi-mole com um mínimo de 30 dias de maturação. Se ultrapassar os 120 dias passa a designar-se Queijo Serra da Estrela Velho. Mas o melhor é esperar dez meses, aconselha quem sabe. Aceite o desafio e não se vai arrepender. E, já agora, sabe como se corta o Queijo Serra da Estrela? À cunha. Não à colher.
Não se esqueçam: um genuíno Serra da Estrela é um queijo produzido na área geográfica de produção da Serra da Estrela, elaborado apenas com leite cru proveniente de ovelhas de raça autóctone Serra da Estrela e/ou Churra Mondegueira, alimentadas exclusivamente de pasto natural da área geográfica de produção da Serra da Estrela. Ao leite apenas poderá ser adicionada a flor do cardo e sal. Após o período de maturação, o sabor, a textura e o aroma do queijo são avaliados periodicamente por provadores acreditados, seguindo as regras de produção do Queijo Serra da Estrela DOP.
A fruta desidratada, outra forma de preservar alimento para os tempos de frio, é outro produto com enorme potencial de desenvolvimento na região, tal como as produção de compotas, o próximo desafio que Célia Silva quer começar a fazer já no próximo ano.
Mais a sul, no Vale de Sendim, na freguesia de Alcaria, concelho do Fundão, marcamos encontro com Berta Godinho, responsável comercial da BeiraLacte, uma empresa familiar de produção artesanal de queijo da Beira Baixa, fundada em 1991 pelo seu pai, Carlos Godinho. No entanto, a arte de vender queijos começou na geração anterior. A Dona Conceição, matriarca da família, comprava queijos frescos aos agricultores, curava-os nas suas caves com o seu saber e depois vendia nos mercados da região.
Aqui são produzidos os três tipos de Queijos da Beira Baixa DOP. O Queijo de Castelo Branco DOP. Produzido a partir de leite cru de ovelha, é um queijo curado durante, um mínimo, de 45 dias, de pasta semidura ou semimole, apresentando uma tonalidade amarelada; o Queijo Amarelo da Beira Baixa DOP, elaborado a partir de leite cru de ovelha ou de ovelha e cabra, é submetido à cura durante, um mínimo de 120 dias, e apresenta pasta semidura ou semimole, e tom amarelado; e o Queijo Picante da Beira Baixa DOP, produzido a partir de leite cru de ovelha e de cabra, também é curado durante, pelo menos, 45 dias, tem de pasta semidura a dura e cor branca acinzentada.
A maturação do Queijo de Castelo Branco DOP e do Queijo Picante da Beira Baixa DOP pode prolongar-se até aos 90 dias (no mínimo). Deste modo, obtém-se um queijo curado de pasta dura a extradura, designados, respectivamente, por Queijo de Castelo Branco DOP e Queijo Amarelo da Beira Baixa Velho.
No portfólio da BeiraLacte estão incluídos, entre outros, o Queijo de Cabra Curado (cura com, no mínimo, 40 dias), o Queijo de Ovelha Curado Reserva (com, pelo menos, oito meses de cura – meses, leu bem, são oito meses) e Requeijão da Beira Baixa DOP, produto resultante da precipitação ou coagulação, através do calor, da lacto-albumina e lacto-globulina contidas no soro, consequente do fabrico dos Queijos da Beira Baixa DOP – Queijo de Castelo Branco, Queijo Amarelo da Beira Baixa, Queijo Picante da Beira Baixa – e apresenta-se como um produto fresco, que não sofreu qualquer fermentação.
Aldeia Histórica de Linhares da Beira. Almoço no restaurante Cova da Loba “Receitas da Feira do Gado e do Queijo”
No restaurante Cova da Loba, espaço de restauração e vinhos funda por Paulo Mimoso, um homem da terra, o menu que saiu da carta gastronómica é uma homenagem à Feira de Gado da Carrapichana e ao que por lá se comia.
Pão de centeio, Queijo Serra da Estrela DOP, de Célia Silva, azeite e azeitonas abrem as portas à morcela frita, como entrada. Para acompanhar, a sugestão é o 1808 Portugal branco, um DOC Beira Interior Biológico, elaborado pelo enólogo Hélder Cunha.
Segue-se um hino aos sabores, uma poderosa sopa de grão das freiras cozinhada com grão-de-bico, massa, azeite, cebola, alho, chouriço picado, presunto e ossos do espinhaço de porco. Síria, uma casta branca identitária da região da Beira Interior deu origem ao Bodas Reais Grande Escolha branco 2019, um DOC Beira Interior, produzido pela Cooperativa Beira Serra, é o vinho que acompanha este prato.
A galinha torrada, com alho, cebola e azeite e a carne da marrã frita – hoje em dia, mais conhecido por febras da feira –, com esparregado e o tinto Rufete DOC Beira Interior tinto, do produtor Casas Altas, que visitámos no dia seguinte.
Para adoçar o palato, papas de carolo das ceifas, com licor de ginja e aguardente, e Maria Moura DOC Beira Interior, um vinho rosado.
A doçaria de uma Beira Transmontana
Já a noite ía longa quando entramos nas estreitas ruas de Castelo Rodrigo, a par com Marialva, uma das duas Aldeias Históricas da Terra Quente Beirã. A chuva e o frio faziam-se sentir nesta terra de solos de granito e xisto, onde predominam as culturas de amendoeira, figueira, oliveira e vinha, centeio e trigo, bem como a criação de porcos e ovelhas.
Chegados à Casa da Cisterna, constituídas por três núcleos de casas transformadas em alojamento, por um casal de biólogos alfacinhas, Ana e António, que trocaram Lisboa por Castelo Rodrigo, há mais de uma década.
Aqui encontramos a Eugénia e a Maria José para uma conversa bem gulosa. Económicos, tonicos, esquecidos ou biscoitos de escalhão dizem-lhe alguma coisa? Desvalorizados, em comparação com os doces conventuais, fazem parte da doçaria popular, e não caem no esquecimento graças à teimosia de pessoas, como Maria José, que começou a aprender esta arte aos 12 anos, com uma vizinha, e agora vende na Padaria Gomes, em Figueira de Castelo Rodrigo. Por seu lado, D. Eugénia começou por caramelizar amêndoas desde tenra idade. Hoje, tem à venda mais de uma dezena de variedades de doces e salgados, na loja Sabores da Geninha, localizada à entrada da aldeia, na rua do Relógio. Farinha de trigo, azeite, aguardente, amêndoas, pouco açúcar, mas muita força, nomeadamente para bater os esquecidos – “chamam-se assim, porque era preciso bater até a gente se esquecer. Às vezes, até dava o sono”, conta Maria José.
Aldeia Histórica de Castelo Rodrigo. Jantar na Casa da Cisterna “Receitas da Aldeia”.
Na Casa da Cisterna, a sugestão gastronómica celebra os sabores da aldeia. Pão de escalhão, azeitonas temperadas com tomilho, laranjas azeitadas com chouriço dos compadres e morcela das comadres. O vinho é de novo um branco Síria DOC Beira Interior 2019, da Adega Cooperativa de Figueira de Castelo Rodrigo. A sopa é de cornizóis – feijão frade da vagem – harmonizada com o Quinta da Biaia DOC Beira Interior Biológico Rosado Mourisco, enquanto, o polvo com migas, que antes chegava a estas terras do interior seco, e tal como o bacalhau, era comido no Natal. Harmonizado com um tinto natural DOC Beira Interior Biológico, da casa Rui Roboredo Madeira. Para a sobremesa, temos a doçaria popular, os tonicos – biscoitos feitos à base de azeite, aguardente e laranja –, com queijo de ovelha e laranja macerada em aguardente. Um torrão de amêndoa e um figo seco são a gulodice.
Um copo de aguardente acompanhou as conversas, que se prolongaram noite dentro, antes de nos entregarmos ao sono no quarto melro azul de uma das casas da Cisterna.
Os néctares da Beira Interior
Produtos e receitas locais pedem harmonizações com vinhos da região. O produtor Casas Altas é um dos que já se associou ao projeto.
Da Aldeia Histórica de Castelo Rodrigo, sensivelmente meia hora depois, chegámos a Souro Pires, freguesia de Portel. Estamos na terra natal da família de José Madeira Afonso, que, após uma vida dedicada à medicina, em Coimbra e uma passagem de dois anos pela Noruega – onde despertou para os vinhos –, regressou ao interior beirão, para cuidar de 15 hectares de vinha, com a serra da Marofa como pano de fundo. Cerca de metade da vinha tem mais de 60 anos, que pode ir até aos 100. Predominam a Baga e o Rufete, nos tintos; a Síria, a Fonte Cal e o Arinto, nos brancos. As cinco castas dão origem a vinhos DOC Beira Interior.
José Madeira Afonso começou a engarrafar no início da década de 1990, depois de vários passeios de bicicleta que fez, e ainda faz, pelos vinhedos do centro da Europa. Movido por alguma curiosidade e vontade de experimentar, trouxe as castas internacionais Chardonnay e Riesling de França e da Alemanha, e transformou as suas vinhas com técnicas francesas. José Afonso, confessa que mais do que uma paixão “o vinho é como o jogo. Achamos que a próxima colheita é que vai ser. Perde-se e volta-se a arriscar, e torna-se viciante”, enquanto caminhamos vagarosamente, a cerca de 700 metros de altitude, entre vinhas velhas, ritual que costuma fazer sozinho enquanto ouve, numa aplicação do telemóvel, música de rádios internacionais, sobretudo clássica e Jazz.
Antes de partirmos rumo à próxima aldeia, tivemos tempo para provar o branco de 2019 e o tinto de 2018 da Quinta Vale do Ruivo, depois de um Rieseling engarrafado antes de completar a primeira fermentação, terminando-a já dentro da garrafa e libertando o gás natural que lhe é característico. Chama-se Pétillant Naturel ou, aberviando, Pét-nat. Trata-se de um método de vinificação diferente e mais antigo do que o de Champanhe.
Aldeia Histórica de Sortelha. Almoço na Casa da Esquila “Receitas da Festa”.
Antes do próximo almoço, fizemos um pequeno passeio pela belíssima Aldeia de Sortelha e conversámos com Maria de Lurdes Matos, contadora de histórias que nasceu na aldeia há 70 anos. Conta-nos como se faz o nó de tecedeira e a sua importância para fechar as tripas dos enchidos. Traz à memória a matança do porco com “grainha”, em que as fêveras – retiradas da zona do pescoço, onde o porco era morto – eram guisadas com cebola, alho, louro e pimentão e servidas num só prato, chamado almofia, de onde todos comiam. “Grainha”, porque quando abriam o porco e viam a carne ensanguentada diziam “tem ali grainha”, algo de ruim.
Outro prato da altura da matança do porco é a sopa de couve cozida, com um bocado de toucinho, em camadas alternadas de couve de inverno, e pão de regueifa de trigo, regadas com azeite a ferver, a que chamam “azeite rechiado” (este rechiado não tem a ver com recheio, mas sim com o chiar do azeite quando ferve).
Morcelas de pão, farinheiras e as recordações de como lavava as tripas com sabão azul nas águas da ribeira, com a mãe, as tias e as primas. Depois, em casa, eram limpas com limão e azeite… e as histórias parecem não terminar.
Mas ainda há espaço para provar as suas deliciosas filhoses beirãs, feitas com farinha de trigo, fermento, azeite, aguardente e ovos. Bem amassadas, fritas e polvilhadas com canela ou açúcar. E, quanto a D. Maria de Lurdes Matos, além da memória para todas estas histórias, ainda tem tempo para gerir dois alojamentos locais: a Casa da Cerca e a Casa da Lagariça, ambas em Sortelha.
Avançamos para o restaurante Casa da Esquila, a breves minutos da aldeia, onde já nos espera o menu inspirado nas receitas da festa, criado pelo chef Rui Silveira.
Sem demoras, que o tempo urge, o couvert: pão de centeio, queijo de cabra (fresco ou seco), azeitonas e azeite. As “famosas” grainhas constam na entrada. Para ambas sugere-se o tinto Rufete DOC Beira Interior do Doispontocinco. Continuamos com uma reconfortante canja de galinha caseira, cebolas, alho seco e cenoura acompanhada por um Reserva Fonte Cal Branco 2019 DOC Beira Interior, da Quinta dos Termos.
O principal, cabrito assado do Santo Antão, regado com o tinto Vinhas Velhas 2017 Reserva DOC Beira Interior da Quinta dos Termos. Para sobremesa, houve leite creme, harmonizado com o Branco Fonte Cal 2017 DOC Beira Interior da Doispontocinco. Para fechar, rabanadas acabadas de fazer. Seguimos a rebolar pela estrada fora, até terras de Idanha.
A oliveira, o trigo e o porco
Entre Idanha-a-Velha e Monsanto, próximo do rio Pônsul, encontramos Tiago Lourenço, um dos guardiões do olival da Egitânea.
O Tiago começou por nos contar que, em 2014, trocou a vida de Lisboa para integrar um projeto num olival tradicional de sequeiro de 180 hectares, em Idanha-a-Velha. Este, ao fim de algum tempo, terminou, mas, a oportunidade de dar continuidade ao projeto levou-o a desafiar Ricardo Araújo, amigo de longa data que, já em 2007 tinha trocado a capital pela Beira Baixa, para criar um dos primeiros projetos biológicos de hortícolas de Idanha. Juntos, deram continuidade ao mesmo projeto do olival. Assim, nasceu Egitânia, nome que preserva a designação dada pelos Visigodos a Idanha-a-Velha.
Produzem o azeite virgem extra biológico Egitânia, a partir de azeitonas exclusivamente de variedades endémicas – Galega da Beira Baixa, e Bical e Cordovil – de Castelo Branco, provenientes de oliveiras centenárias de sequeiro, em modo de produção biológico, plantadas em solos de xisto a 400 metros de altitude. O azeite é extraído a frio de azeitonas colhidas manualmente pela população local e processadas num período máximo de 24 horas após a colheita, apresentando um valor máximo de 0,2% de acidez.
As ovelhas são os trabalhadores permanentes da quinta
São cerca de duas centenas as obreiras da raça Merina Preta, que tratam dos terrenos, limpando e fertilizando os solos. Face à escassez de água, a preservação da terra à superfície é fundamental. “A introdução das ovelhas evita revolver os solos e traz uma nova fonte de receitas com a venda da carne”, afirma Tiago Lourenço, que acrescenta: “é preciso olhar para o passado para fazer o futuro.” É com este sentido de responsabilidade que Tiago e Ricardo estão a promover escavações de prospeção. Até já encontraram ruínas e diversos vestígios, como redes de pesca (a Ribeira de Rio de Moinhos, afluente do rio Pônsul, passa ali ao lado) ou ânforas, provas de que a presença humana deste território já vem de longe. A sua missão é valorizar o património agrícola, cultural, paisagístico e humano.
Acompanhados pelo Tiago deixamos o olival e fizemos um pequeno passeio em redor da Aldeia Histórica de Idanha-a-Velha. O caminho levou-nos à história da região, a um pequeno olival milenar onde se destaca uma oliveira com mais de 1600 anos. Por fim, chegamos ao forno comunitário da aldeia onde Beatriz Gomes, de 73 anos, tem o pão a fermentar há várias horas. Ao mesmo tempo que coloca o pão de trigo no forno, explica como faz o fermento e a massa, e enumera todos os ingredientes necessários: farinha, água, sal e tempo. “Toda a vida vida fiz pão como a minha mãe e a minha avó”. Atualmente, faz apenas para consumo próprio e para a família. “Sou a única na aldeia que dá uso ao forno comunitário”, lamenta. Para hoje, além do pão, está a fazer borrachões e bicas de azeite, bolos populares da Beira Baixa, que nos fazem crescer água na boca.
Mas antes da ansiada prova, subimos ao Beco do Forno, situado a escassos minutos, na Aldeia Histórica de Monsanto, onde Paula Lopes nos aguarda na sua mercearia, para nos dar a conhecer os mais distintos enchidos da região. Os pais faziam a matança do porco e Paula Lopes, mantendo a tradição familiar, abriu o talho há 27 anos. Tinha, naquele tempo, 20 anos.
Do chouriço de carne de porco com pimentada (massa com pimenta doce), à batateira (com batata cozida e gordura de porco, com tempero da chouriça, este é um enchido de aproveitamento), passando pela farinheira e pela morcela de fígado (tradicional e um exclusivo da região, com fígado de porco e carne ensanguentada da cabeça, com pimentada), o paio ou a morcela de arroz, para assar. Os orégãos e os cominhos conferem um toque especial a todos estes enchidos. A produção mantêm-se sazonal, de novembro a abril. A matéria-prima é proveniente da própria criação de porcos.
Há ainda os borlhões, especialidade que se come geralmente nas grandes festas da região. É um prato bastante trabalhoso, feito com carne de cabra temperada com bastante hortelã e sal,cozinhada em pequenas bolsas feitas com o bucho do próprio animal. Paula Lopes faz cerca de 1500 por ano.
Regressamos ao forno comunitário de Idanha-a-Velha, para provar o pão, os borrachões e as bicas de azeite acabados de fazer, com o azeite virgem extra biológico Egitânia. Tiago Lourenço diz que “o azeite é perfeito no momento em que é feito” e nós acrescentamos que ninguém resiste a um bom pão acabado de sair do forno.
A visita ao olival centenário da Egitânea, às oliveiras milenares de Idanha-a-Velha e ao lagar de varas do século XIX, fazem parte da Rota do Azeite da Beira Baixa .
Aldeia Histórica de Castelo Novo. Jantar na Associação Sócio-Cultural de Castelo Novo “As receitas que são laços de família”.
Depois de um dia intenso é bom pousar no conforto familiar da comunidade. Recebidos com o calor de Laurinda Duarte, fundadora e presidente da Associação Sócio-Cultural de Castelo Novo, aqui comemos “as receitas, que são laços de família. Na casa dos meus avós a fartura não era muita, mas tínhamos uma pequena quinta e havia sempre alguma coisa. A minha avó fazia um refogado, metia feijão, chouriça, umas sopas de pão e ovos mexidos por cima”, conta Laurinda. Ossos da suã (espinhaço do porco) e arroz completaram a manja, que terminou com papas de carolo e um licor, para não resfriar.
Pernoita na Cerca Design House, solar beirão transformado em casa de campo, localizada na aldeia de Chãos e com vista para a serra. Foi um regresso, pois já por cá tínhamos estado numa escapadela à serra da Estrela. Leia a reportagem aqui.
Aldeia Histórica de Castelo Novo. Almoço no Pedra Nova “Receitas da Aldeia”.
De volta à Aldeia Histórica de Castelo Novo, a manhã começou com um desafio surpresa. Trocaram-se as voltas ao passeio pedestre pela aldeia de Castelo Novo e a sugestão foi subir à serra da Gardunha, aproveitando o serviço gratuito de mobilidade sustentável, composto por vários carros elétricos, resultado de uma parceria entre as Aldeias Históricas de Portugal e a Renault . A subida é vertiginosa. As vistas são soberbas. Para os mais corajosos, há a possibilidade de subir a pé. Nós, como programado, caminhámos pela aldeia de Castelo Novo antes do almoço de despedida, na Pedra Nova, turismo de aldeia, que serve refeições a hóspedes e forasteiros. Para isso, basta fazer reserva.
Cozinhado por Miguel Inácio, um dos proprietários do Pedra Nova, que vive na aldeia – em sociedade com o Pedro Raimundo, que reside em Lisboa –, o repasto sofreu ligeiras alterações em relação ao que está definido no Menu Aldeia de Castelo Novo, fruto do que estava disponível, algo que acontece com frequência quando se está em casa. E foi assim, que nos sentimos, em casa, e assim, começámos a refeição, com pão de centeio, azeite com alecrim, azeitonas e queijo de cabra da Soalheira. Para entradas, peixinhos da horta, abóbora frita e ovos verdes, harmonizados com o branco Cova da Beira DOC Beira Interior 2019, da Adega do Fundão. Seguiu-se um caldo de feijão frade, cultivado no terreno depois da colheita do centeio.
Miguel Inácio vai explicando o que faz – é designer de comunicação e interiores, e trabalha à distância, a partir da aldeia – e conta algumas histórias, para contextualizar Diz-nos que “os animais eram criados para dar os ovos, o leite e trabalhar no campo. Só eram sacrificados em momentos especiais, como o Natal, a Páscoa e outros momentos festivos”. E como hoje é um dia especial, temos o arroz feito na água da cozedura do frango, que, depois, vai ao forno a tostar, regado com o tinto Colheita Selecionada Quinta dos Currais DOC Beira Interior 2017. Fechámos com a tigelada de leite de cabra e a já habitual gulodice, desta vez, pastéis de chila.
Assim, terminou um roteiro por algumas das Aldeias Históricas de Portugal. Dias de conversas enriquecidas pela beleza das paisagens naturais e do património humano. Uma viagem pelas cozinhas de sentimentos destas terras, com gentes sujeitas à dureza da montanha, mas com uma grande resistência às adversidades. É este o Portugal rural, que vive com as dificuldades das regras, com a burocracia das leis, mas que nos recebe com sorrisos.
Penso que o primeiro grande passo desta obra – pôr as pessoas a pensar, desafiar quem está e quem visita, a alterar mentalidades – está dado.
Boa viagem! •