Festivais Gil Vicente 2023

A 35.ª edição dos Festivais Gil Vicente tem data marcada para junho. São várias as estreias e as coproduções que se avizinham, demonstrando a vivacidade da nova criação (às mãos de nomes como Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema; Tita Maravilha; Plataforma285; Teresa Coutinho; silentparty; e Luís Mestre), das cooperações frutíferas em rede (como são exemplos o Projeto CASA e a Bolsa Amélia Rey Colaço), bem como conversas e debates que nos aproximam (público e artistas) e promovem o pensamento em torno de matérias atuais que nos tocam regularmente e a que a arte, e o teatro em particular, se dedica a refletir.

Nesta edição de 2023, o diretor artístico dos Festivais Gil Vicente (Rui Torrinha) propõe “fazer estremecer as fundações do tempo e do espaço”, lembrando que a “o teatro, arte política por natureza, no seu discurso e ação, tenta encontrar ideias e dispositivos para desencadear relações com a problemática social atual.” 

Para começar, logo no dia 01 de junho (às 21h30, tal como em todos os espetáculos), a releitura da história e de uma nova interpretação do significado dos mitos, para lançar de forma corajosa uma outra escrita que preencha o espaço entre a ficção e a realidade em “Cosmos”, peça em que as criadoras Cleo DiáraIsabél Zuaa e Nádia Yracema propõem uma viagem interplanetária, onde, através do resgate da mitologia africana e da revisão de eventos históricos do passado, se questiona a humanidade e o caminho percorrido até aos dias de hoje. Uma jornada de dez intérpretes – Ana Valentim, Alberto Magassela, Bruno Huca, Cleo Diára, Cirila Bossuet, Manuela Paulo, Mauro Hermínio, Paulo Pascoal, Puta da Silva e Rita Cruz – em busca de novas possibilidades de futuro.

No caminho desta edição dos Festivais Gil Vicente (FGV), a 02 de junho reencontrar-se-á referenciais clássicos que servirão de base para novas estórias de vida que, entretanto, se desenham sem pedir licença neste tempo de grande transformação. Tita Maravilha apresenta-nos “As Três Irmãs”, uma abordagem tropical ao universo de Tchékhov, a partir de uma leitura pós-contemporânea e multidisciplinar do clássico com o mesmo nome. Nesta criação – vencedora da Bolsa Amélia Rey Colaço, uma iniciativa promovida pelo Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa), A Oficina / Centro Cultural Vila Flor (Guimarães), O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo) e o Teatro Viriato (Viseu) –, Diogo, Macha e Irina vivem numa cidade no interior da Rússia, aborrecidas com o dia a dia da província, que as isola e castra os seus sonhos, desejando acima de tudo voltar a Moscou/Moscovo, a sua terra natal. Nesta coprodução que envolve A Oficina / Centro Cultural Vila Flor, Tita Maravilha propõe uma narrativa onde os conceitos basilares da sociedade normativa são revisitados a partir das subjetividades de cada uma destas três irmãs, antecipando que nada mais ficará na mesma.

O dia 03 dos FGV, coincidindo com o dia 03 de junho, propõe levar-nos numa viagem delirante da Plataforma285, envolta pela mercantilização e o capitalismo dos afetos, no sentido especulativo entre o que somos, sentimos e projetamos. “all you can eat” é um espectáculo transdisciplinar que cruza teatro, performance, instalação, dança e concerto ao vivo, que busca reclamar o direito ao ócio, enquanto se descobre cada vez mais preso, cada vez mais produtivo, cada vez mais rentabilizado. Se, por um lado, exigimos o direito ao descanso e ao aborrecimento, por outro são cada vez mais os estímulos que desvirtuam esse não-fazer-nada, criando a sensação de que esse tempo deve ser ocupado sob pena de não o estarmos a aproveitar. E assim se levante uma reflexão: entre viagens, ioga, meditação, exercício físico, workshops, atividades de degustação, como é que esse tempo já foi mercantilizado por um capitalismo dos afetos e do tempo? 

Dando um passo maior, desta feita até ao dia 08 de junho, e cruzando os territórios da pesquisa e da autobiografia, Teresa Coutinho tenta aferir, em “Solo”, de que forma o teatro e o cinema contribuíram para a construção de uma ideia de Mulher que a moldou ou que quis repudiar: tanto no que diz respeito à sua imagem como a uma ideia mais generalista de beleza, de sexualidade, de força e de vulnerabilidade. O que é que, a reboque destas influências, se viu obrigada a reservar ou expor; o que lhe foi transmitido pelas mulheres da sua família, através da sua grande mestria do silêncio, expondo a condição feminista que a caracteriza e a move. 

Nesta edição, o teatro também abraçará exercícios experimentais e poéticos que propõem um olhar influenciado pela arquitetura do lugar: como fazer um esboço de um edifício que permita a emancipação permanente dos corpos que o habitam, enquanto lhes devolve a possibilidade de uma existência em conjunto? A interrogação é colocada pelos silentparty. A descoberta de outras possibilidades será assim ensaiada. Em “Um Quarto Só Para Si”, é proposta uma sobreposição dos modos de organização do espaço e dos corpos no teatro com os da arquitetura, acreditando que experimentar diferentes modelos de construção – de espetáculos e de edifícios – é um exercício de imaginação de sociedades possíveis. Esta coprodução Projeto Casa (Espaço do Tempo, Teatro Louletano e A Oficina / Centro Cultural Vila Flor) e Teatro Municipal do Porto é aqui apresentada em estreia absoluta a 09 de junho.

E no fecho desta edição, surge uma outra estreia absoluta a 10 de junho, com o humanismo e o existencialismo a serem capturados como fonte inesgotável para a formação de um campo sensível, em “Noite de Verão” de Luís Mestre, inserida na Tetralogia das Estações. Dois millenials acabam de se conhecer, um homem e uma mulher que atravessaram duas crises assimétricas em dez anos: a financeira e a pandémica. Estão num Verão quente e querem sentir uma leveza acolhedora, intangível, algo que perderam precocemente nas suas curtas vidas. Aparentemente, falam de coisas banais, leves. Mas o que realmente querem dizer (nesta coprodução Teatro Municipal do Porto, Casa das Artes de Famalicão, Cineteatro Louletano, 23 Milhas, A Oficina / Centro Cultural Vila Flor, Cine Teatro de Estarreja, Teatro Municipal de Bragança e Teatro Nova Europa), aquilo de que verdadeiramente falam, voz e corpo, é sobre as suas ansiedades e os seus medos.

As habituais e essenciais atividades paralelas do evento não poderiam ser esquecidas, sendo promovidas nesta edição pelo Teatro Oficina e pelo seu diretor artístico convidado (Mickaël de Oliveira), tocando a noção de ‘gesto artístico’ e aproximando público, criadores, intérpretes e equipas artísticas em momentos de conversa-pós espetáculos e debates. 

Acontecem assim três conversas após os espetáculos “As Três Irmãs”, “Um Quarto Só Para Si” e “Noite de Verão”, a 02, 09 e 10 de junho, respetivamente. Sendo facto que a noção de ‘gesto artístico’ tem animado a reflexão estética, ética, moral e, de certa forma, ontológica das artes no ocidente, com ênfase a partir do romantismo e com ainda mais escala no modernismo, são também promovidos dois painéis de debate sobre a questão do gesto artístico, nas tardes de 3 e 10 de junho. O primeiro – “O que fundamenta o gesto artístico” – visa dar lugar a artistas, programadores e outros agentes culturais para que possam partilhar o seu trabalho e a manufatura rizomática do seu gesto. “Como apoiar a radicalidade do gesto artístico” prolonga a discussão para pensar os desafios que o sector das artes performativas portuguesas enfrenta no apoio ao aparecimento, visibilização e consolidação de novos gestos singulares.  

FESTIVAIS GIL VICENTE 202301 A 10 JUNHO
01 junho, 21h30, CCVF / Grande Auditório Francisca Abreu 
Cosmos – Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema 

02 junho, 21h30, CCVF / Pequeno Auditório  
As Três Irmãs – Tita Maravilha, [Bolsa Amélia Rey Colaço] 

03 junho, 21h30, CIAJG / Black Box 
all you can eat – Plataforma285 

08 junho, 21h30, CCVF / Palco do Grande Auditório Francisca Abreu 
Solo, Teresa Coutinho 

09 junho, 21h30, CCVF / Pequeno Auditório 
Um Quarto Só Para Si – silentparty, [Projeto CASA] 

10 junho, 21h30, CIAJG / Black Box 
Noite de Verão – Luís Mestre 

[ATIVIDADES PARALELAS]
02 junho, CCVF / Pequeno Auditório  
Após o espetáculo “As Três Irmãs” Conversa com Tita Maravilha

09 junho, CCVF / Pequeno Auditório 
Após o espetáculo “Um Quarto Só Para Si” – Conversa com silentparty

10 junho, CIAJG / Black Box 
Após o espetáculo “Noite de Verão” – Conversa com Luís Mestre

03 junho, 17h00, CCVF / Pátio interior 
Debate “O que fundamenta o gesto artístico?” 

10 junho, 17h00, CCVF / Pátio interior 
Debate “Como apoiar a radicalidade do gesto artístico?” 

A tomar nota de tudo. A embarcar em mais uma viagem dos incontornáveis Festivais de Gil Vicente. •

+ CCVF
© Fotografia: “Cosmos” por Filipe Ferreira.

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