“O Meu Amigo H.” / CCVF

Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu embarcam numa viagem ao presente e ao futuro da democracia com “O Meu Amigo H.”, partindo do texto de Yukio Mishima (1925-1970, Japão), e estreiam em absoluto a sua nova encenação com um elenco de peso a bordo composto por Pedro Lacerda, Rodrigo Tomás, Ruben Gomes e Virgílio Castelo. Tudo a acontecer este mês, no Centro Cultural Vila Flor (CCVF), em Guimarães.

Depois de ser eleito líder do país e ter neutralizado todas as forças que se lhe opunham, H. tem a possibilidade de aumentar ainda mais o seu poder: o Presidente atual está às portas da morte e, com o apoio das Forças Armadas, H. pode suceder-lhe. Identificadas as ameaças à sua ascensão, na Noite das Facas Longas centenas de membros do Partido foram assassinados, o exército foi extinto e a situação controlada. O resto já sabemos ou já o esquecemos? A questão levantada por Mishima, nesta peça tão calculista, pode hoje ser colocada desta forma: o que pode um Regime fazer quando aqueles de quem precisou, aqueles que manipularam as massas em seu favor, se tornam incómodos? O Regime não sobrevive sem a multidão, mas tem lugar para intermediários ou precisa de ser ele a controlá-la?

Esta estreia da companhia Teatro Nacional 21 acontece no CCVF, mais concretamente no Grande Auditório Francisca Abreu, às 21h30 do dia 19 de maio, e os ingressos já se encontram disponíveis.

Segundo Yukio Mishima, “Hitler foi um génio da política“. Ele próprio abraçou também as ideias nacionalistas da honra e do destino e foi capaz de se matar, violentamente, espetacularmente, por elas. Mas o que quer ele dizer com ‘política’? Esta não é uma peça sobre a política, o coletivo, mas sobre uma estética da guerra permanente, da revolução sem fim, sobre a masculinidade e a brutalidade da beleza, quando a beleza pura, sobre-humana, é o único ideal que nos orienta. Aqui só tem espaço a pequena política, a de bastidores, a dos pequenos jogos internos de poder e de sobrevivência.

Por outro lado, fazer hoje, esta adaptação, limpa da iconografia nazi, esta peça de homens, fazer hoje este texto tão frio e problemático e tão embriagado pela poesia da violência e da morte, é uma oportunidade para pensar sobre este outro espectro que, uma vez mais, avança sobre a Europa, o da destruição, da proibição, da intolerância, do lucro, dos ajustes de contas, do ressentimento e da nostalgia dos passados por cumprir: se quisermos, para usar uma palavra tão cara a Mishima, o do patriotismo.

A encenadora do espetáculo Cláudia Lucas Chéu presta-se a partilhar que: “Embarcar no universo de Yukio Mishima, ao contrário do que julguei inicialmente, mostrou-se uma viagem ao presente e ao futuro próximo. O nosso amigo H., embora diferente do texto homónimo do autor japonês, mantém algumas das suas ideias basilares, alguns dos pilares seguros com os quais erguermos o espectáculo. Esses pináculos fortes que sustêm o inferno na terra são representados por quatro homens: o capitalista, o militar, o sindicalista e o H., o Homem, o líder, que nasce do conflito e da ambição pelo poder. Este H., segundo Mishima é um «génio político», mas eu prefiro chamar-lhe «monstro» ou «monstros» — do passado, do presente e do futuro. Acredito que mostrar a criação destes demónios políticos pode extinguir alguma da chama com a qual se vão alimentando ao longo dos tempos. Acredito que este espectáculo pode ser como o fumo que faz disparar o alarme.”  

Por seu lado, para o outro encenador da dupla, Albano Jerónimo, “As horas que vivemos são difíceis e os anos que aí vêm são de transformação, na minha opinião, suprema. Não há sistemas e políticos que revelem capacidade de os enfrentar e/ou resolver. À esquerda e à direita, afirma-se que a democracia está esgotada. O desenvolvimento económico, tecnológico afastam-se do homem e da sua bárbara/primária condição. Que fique claro, não há solução fora da democracia, tal como não há solução fora do que está ao alcance das mãos e do homem, numa perspectiva humanista e inclusiva. Mishima coloca-nos um espelho que se revela um caleidoscópio, uma espécie de fresco social, político e humano.

O próprio complementa que este espetáculo, levado a cabo a partir de um dos autores mais contraditórios do séc XX, “expõe estes mecanismos de sobrevivência política e dá-nos a ascensão do ego, do horror e da desumanização. Não basta ser democrata para defender a democracia, nem chega ser provocador para a derrotar.” E apressa-se a questionar e a sugerir uma (con)sequência: “Que terror é este, que é o de uma máquina imparável? As peças estão agora no sítio. Falta o momento, o H.”

O autor do texto que suscita “O Meu Amigo H.”, Yukio Mishima (1925-1970), é detentor de uma obra literária assente no equilíbrio, às vezes desconfortável, entre a glorificação da cultura japonesa e a assimilação de modelos ocidentais (a sua escrita para teatro, por exemplo, divide-se entre a reescrita de peças de teatro noh e textos que seguem as convenções da dramaturgia europeia), e deixa uma obra sobretudo romanesca dedicada aos temas da beleza, do (homo)erotismo e da morte. Politicamente, estava próximo das ideias nacionalistas que alimentaram o pensamento de extrema direita nas décadas de 1930 e 1940. A derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e o período que se lhe seguiu, de progressiva abertura cultural, política e económica ao Ocidente, levariam, segundo ele, à destruição da verdadeira essência do que era ser japonês. Pelas suas posições e declarações políticas, ainda hoje é uma figura incómoda no Japão.

Esta coprodução d’ A Oficina/Centro Cultural Vila Flor, Teatro José Lúcio da Silva, Culturgest e Casa das Artes Vila Nova de Famalicão, é adaptada por Albano JerónimoCláudia Lucas Chéu e Ricardo Braun (também responsável pela dramaturgia), a partir do texto de Yukio Mishima, tendo o espaço cénico também às mãos de Albano Jerónimo e o desenho de luz de Rui Monteiro, a música de Carincur e o vídeo de João Pedro Fonseca.

A não perder, este maio, em Guimarães. •

+ CCVF
© Imagem de destaque: DR.

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