Editado em abril deste 2023, “Ones & Zeros” é o mais recente álbum de originais dos Birds are Indie. Se em abril agitavam a primavera ao editar este novo álbum, uma pièce de résistance indie, agora aquecem-nos o outono – que se avizinha – com a estreia de um vídeo-álbum em cinema, complemento perfeito para este trabalho conceptual e para uma conversa a dois tempos.
Chegou-nos, este “One & Zeros”, como “um disco conceptual cheio de dualidades (real/virtual, preto/branco, humano/artificial, tudo/nada, digital/analógico) e tudo o que o compõe – música, imagens, fotos, vídeos – foi concebido num mesmo universo (paralelo?…), habitado por personagens presas entre mundos, divididas nas suas vontades, simultaneamente eufóricas e desfeitas.”
Estamos numa espécie de Twilight Zone Utópica-Distópica, onde a lógica booleana entra (quase) sem pedir licença. Rapidamente, entramos neste “universo paralelo” e após uma primeira escuta percebemos que o trio indie de Coimbra perdera a “inocência” da pop suave minimal com que nos alimentava nos primeiros álbuns. O xilofone e a guitarra acústica deram lugar a sintetizadores e drum machines. Ganharam mais corpo, cresceram musicalmente e a sonoridade – claramente mais rock – essa está mais preenchida, estruturada, segura de si e com a confiança natural de quem mergulha, sem medos, numa viciante nova vaga de ritmos, sem esquecer a sua identidade. “Ones & Zeros” é a prova que arriscar compensa, e de que maneira.
Face a esta conceptualidade indie, também a estrutura da conversa impunha uma mutação. Se, por norma, quando nos sentamos para conversar sobre novos álbuns começamos por falar no som e depois na estética gráfica – ou por vezes deixamos esquecida a mesma, focando-nos só nas novas composições sonoras -, neste “Ones & Zeros” a concepção gráfica é de tal maneira indissociável das novas composições que a decisão foi imediata, era por aí que tudo ir começar, pelo universo estético/gráfico. E para facilitar a leitura e porque fazia todo o sentido, esta conversa – com Ricardo Jerónimo (RJ), Joana Corker (JC) e Henrique Toscano (HT) – está divida em Capítulo Zero e Capítulo Um.
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Capítulo Zero/0
Toda a vossa imagem gráfica, graças ao trabalho exímio da Joana Corker (designer gráfica além de multi-instrumentista), tem sido sempre o reflexo ilustrado da vossa música, uma forma de arte indie. Neste novo álbum, “Ones & Zeros”, mantém-se a regra, mas eleva-se de sobremaneira a bitola. Atentos às vossas notas e explicações, lemos que recorreram a um programa de IA (Inteligência Artificial) para chegarem a esta imagem final. Programa que, depois, a Joana manipulou e trabalhou para chegar ao que nos é colocado em mãos.
Como surge a ideia de usar uma ferramenta de IA para a imagem gráfica deste trabalho e até que ponto se tornou mesmo inevitável o uso da mesma?
RJ: Tendo em conta o conceito que tínhamos predefinido para o disco, a Joana andava a investigar as possibilidades de uso de Realidade Aumentada (RA) através do artwork do disco. Mas, a certa altura, sugeri-lhe usar a Inteligência Artificial (IA) enquanto ferramenta de criação de imagens a servir como base para o seu trabalho de design. E sugeri porque achava que também tinha tudo a ver com o álbum, ou seja, uma espécie de limite difuso entre o lugar do humano/real e o da tecnologia/virtual.
JC: No entanto, ainda não desisti da ideia da Realidade Aumentada (RA) para o artwork deste disco. Seria incrível levar mais além o grafismo que está visível, pois a aplicação desta tecnologia faz todo o sentido neste disco. Acho que RA será uma tecnologia que iremos utilizar futuramente no nosso dia-a-dia, contudo ainda existem muitas limitações tecnológicas de software e hardware para tornar esta ferramenta universal. Na altura em que estávamos a discutir sobre o artwork do disco, a RA era a tecnologia mais arrojada e até falámos em fazer NFTs. Contudo, de repente começaram a surgir, como cogumelos, programas de IA acessíveis em qualquer computador, que nos levaram a optar por esta via tão disruptiva.
HT: Em certo sentido fomos “pioneiros”, (risos), porque quando surgiu o conceito do disco e a ideia de usar ou RA ou IA para o artwork do disco ainda não se falava em programas/ apps como ChatGPT e afins. E hoje, estão em todo lado.
Lado desafiante de trabalhar com IA: até onde vai o programa por vós utilizado e onde entra a manipulação da Joana?
JC: Até agora, só trabalhei com programas de geração de imagens e todo o processo é feito através de escolhas: tu escolhes a ordem/pedido da imagem que pretendes, tu escolhes as variações que o programa te dá, até chegares à imagem final. Para a imagem da capa foi logo claro que uma das muitas imagens geradas pelos programa seria a tal. Porém, foi preciso um processo de reconstrução e refinação, feito por mim, baseado na imagem da IA.
RJ: Para mim, do pouco que desvendámos desta tecnologia, o interessante foi a forma como funcionou enquanto desbloqueador rápido de ideias. Ou seja, rapidamente obtemos propostas diversas, comandadas por nós, mas com um certo sentido de aleatoriedade que, por sua vez, desperta novas ideias que podemos, com o toque humano, aprimorar até ao ponto que imaginamos como produto final.
Estão mesmo crentes que a Joana não foi manipulada, sem saber, nesta dança a duas mãos com IA?
RJ: Convidámos a IA para uma dança, foi um pequeno flirt, mas não temos em vista uma relação de longo prazo.
JC: Prefiro dançar somente com humanos… No entanto, todos nós fomos manipulados ao alimentar com conteúdos a gigantesca base de dados que é a Internet que, por sua vez, está a alimentar o surgimento da IA. Estamos todos deslumbrados com esta nova tecnologia, mas esta é uma tecnologia que nos levará para territórios desconhecidos nos quais temos de reflectir e discutir. Até agora, toda a tecnologia baseia-se numa relação Homem-Máquina em que o Homem tem o poder de controlo e decisão. A rápida evolução da IA vai alterar o poder desta relação. Quando as máquinas se tornarem independentes e sencientes, o Homem tornar-se-á obsoleto.
HT: Muito provavelmente foi e sem se ter apercebido. Ou não anda o Google a escutar todas as nossas conversas?! É assustador quando estamos a falar de um produto e nos surgem anúncios relacionados com esse produto, quase no imediato. Já nos aconteceu a todos, quase de certeza.
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Preto, Branco, Amarelo. Em que se traduz esta vossa escolha para a combinação cromática neste trabalho? Algum tipo de referência – ou apenas aleatório – no mundo da (não) lógica?
RJ: Preto e branco está cada vez mais o nosso cabelo, (risos). A ideia de preto e branco também ficou definida cedo, quer para o artwork, quer para os videoclips. Isto para reforçar a lógica de opostos, de contrastes, de uns e zeros. Também para sublinhar o lado algo negro de alguns temas, mas fazendo sobressair a luz, sempre que ela surge. Mas queríamos uma terceira cor para simbolizar todas as nuances cromáticas entre os extremos e assim surgiu o amarelo.
JC: Esta combinação cromática ajuda também a quebrar a linha colorida e com muito trabalho manual à mistura dos artworks anteriores. É uma maneira de reforçar que este álbum não é um álbum na linha até então habitual nos Birds Are Indie.
Ainda sem abandonar a estética visual deste trabalho, mas passando para o vídeo e para o “vosso” Tiago Cerveira. Três telediscos (dois já no ar). 10 vídeos que compõem um vídeo álbum com estreia já à vista. Tudo na insana loucura de gravar – estes 13 vídeos – em dois dias, em Coimbra. Tudo numa linha estética singular. Tudo na linha das dualidades e do conceptual que nos definem.
Como nasce a ideia (bem ambiciosa) de gravar 10 telediscos, em dois dias, com o Tiago Cerveira?
RJ: Queríamos reforçar a ideia de “álbum” como um todo e não apenas de um conjunto de canções. O normal é fazer-se um ou dois videoclips de cada disco, mas comentámos com o Tiago Cerveira este nosso desejo e ele, de peito aberto, juntou-se à aventura.
HT: Numa época do consumo imediato, dominado por Playlists de singles e algoritmos, que mudam todas as semanas, decidimos ser um pouco contra-corrente e optámos por lançar também um vídeo-álbum. Até porque o álbum é um bloco e não um conjunto de singles, foi feito a pensar como algo com princípio meio e fim… Um filme para ser visto do início ao fim.
Dois telediscos já estão a rodar – “21st Century Heroes” e “So Many Ways”. Falta um teledisco e o vídeo-álbum. Tudo pela mão do realizador Tiago Cerveira, que embarcou nessa viagem convosco, “de peito aberto”.
O Tiago e Birds, foi um trabalho uno, a quatro, para criar um storyboard para cada composição ou o Tiago entra só na filmagem, na técnica? Como foi este processo de gravação?
RJ: Tal como no vídeo anterior no qual tínhamos trabalhado com o Tiago (“Our last waltz”) nós temos já uma storyboard definida, mas sempre com alguma margem de manobra, por um lado, porque não conseguimos definir tudo ao ínfimo pormenor e, por outro, porque sabemos que no terreno irão surgir imprevistos ou ideias novas ou coisas a aproveitar. E é nessa fase que o Tiago é uma grande ajuda porque, além de rapidamente entender o que imaginamos, também rapidamente contribui com as suas ideias, sejam elas conceptuais, sejam para resolver questões práticas.
O cenário construído, dos dois singles, parece-nos um edifício semi-industrial… talvez, ficamos na dúvida. Podem desvendar o espaço escolhido, se foi tudo filmado nesse mesmo espaço e o porquê da escolha?
RJ: O espaço foi-nos gentilmente cedido pela Critical Software, que há poucos anos adquiriu o edifício da antiga Coimbra Editora. Mas como entretanto se meteu uma pandemia, o espaço está ainda expectante, meio em ruínas, mas com enorme carisma e muita versatilidade cinematográfica. Além disso, quando imaginámos fazer 10 vídeos, também se colocaram algumas questões logísticas que ficaram logo resolvidas por podermos tratar de tudo num só espaço, totalmente ao nosso dispor.
JC: Pessoalmente adoro o espaço, talvez por uma razão pessoal e outra profissional: adoro coisas antigas e o facto de ter sido uma tipografia. O facto de termos filmado os vídeos num espaço que teve uma tecnologia considerada actualmente obsoleta, faz um excelente contraponto com os temas distópicos e antagónicos que falamos no disco: analógico/digital, realidade/virtual. Embora o espaço esteja praticamente vazio, sente-se uma forte presença dos antigos trabalhadores através dos recortes colados nas paredes do edifício. É uma pequena pérola da história industrial de Coimbra que, ao filmar nos diversos espaços do edifício, fizemos uma pequena contribuição de preservação histórica e de memória. Poderíamos ter feito os vídeos sentados no computador com ferramentas de IA, como utilizámos para o artwork, mas assim perderíamos a oportunidade de conhecer melhor este espaço e de viver esta experiência com o Tiago Cerveira.
HT: E não deixa de ter a sua graça ser, actualmente, um edifício da propriedade de uma empresa do universo digital.
O que podem mais dizer deste vídeo-album para acicatar quem aqui vos lê?
JC: Um nariz quase partido, uma tendinopatia no tendão de Aquiles, três vídeo-singles e 10 vídeos gravados num fim de semana. Uff…
RJ: O video-album está feito. A ideia não será fazer video-concertos, porque a lógica não é essa. É sim convidar as pessoas a “ouver” o disco, de um só fôlego. Vamos ter a estreia na Casa do Cinema, em Coimbra, no dia 30 de setembro!
HT: E mais uma vez, em pleno século XXI, numa era dominada pelo universo digital, vamos estrear o vídeo-álbum numa sala de cinema e não numa plataforma de streaming. Acaba por ser o reflexo da nossa maneira de estar na música e na vida.
Deixando o universo mais visual do vosso trabalho e a parceria (infalível) com a mestria de um Tiago Cerveira, rumamos para o conceito do todo, para a génese e construção deste novo capítulo dos Birds are Indie.
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A utopia foi-se e instalou-se a distopia no vosso universo criativo? Ou haverá sempre espaço – e a necessidade – para a utopia existir, no acto criativo, mesmo que num mundo distópico?
RJ: Nem éramos utópicos antes, nem distópicos agora. Mas ambas as realidades ou perspectivas estão sempre presentes, desde tempos antigos. Quando a tecnologia avança com uma rapidez vertiginosa, mais fica exposta a dicotomia entre (mais) estes opostos. E é nesse território intermédio (de indecisão, de equilíbrio, de tentação, de medo) que o disco toma forma.
A palavra conceptual está sempre presente, sempre que apresentam este novo trabalho.
Na arte, temos um conceptualismo em J. Beuys, em J. Cage, sem esquecer, e.g., H. Flynt sobre Fluxus. Em que se traduz o conceptual no vosso trabalho?
RJ: Definimo-lo assim porque pensámos nas várias vertentes do álbum de forma complementar e antecipadamente. As letras, as músicas, o design, as fotos promocionais, os videoclips, tudo foi pensado em conjunto, de forma a tornar-se num puzzle de estética e lógica coerentes. Todos os discos anteriores eram um conjunto de canções dispersas que, no fim de estarem feitas/gravadas, é que se viam revestidas de todo esse lado da imagem, de forma relativamente neutra e não pensada num todo.
A vossa evolução sonora tem sido, indubitavelmente, gradual. Todavia, é neste trabalho que sentimos a maior “mudança”, até nos novos instrumentos que passam a tocar – e.g. a Joana no sintetizador e o Henrique no baixo.
Este salto maior surgiu naturalmente na pré-produção, ou já havia acontecido alguma(s) conversa(s) a definir esta mudança como algo que tinha agora o tempo para acontecer?
RJ: A mudança aconteceu, felizmente, porque nós quisemos que ela acontecesse. Ou seja, não fomos empurrados para ela por alguém, para seguir algum tipo de moda ou por alguma outra necessidade que não a de nos auto-desafiarmos. O disco “Migrations”, que lançámos em 2020, coincidiu com o nosso 10º aniversário e, logo então, definimos que esse seria um fechar de capítulo, no que a discos dizia respeito.
JC: A mudança acontece naturalmente na preparação para os concertos. Temos o hábito saudável(?) de modificar as nossas músicas por diversas razões. Geralmente as músicas ficam mais rápidas e com um som mais pesado, o que torna para nós mais divertido tocá-las ao vivo. Então pensámos: porque não levar isso mais além, com outros instrumentos?
HT: Foi um desafio, um sair da nossa zona de conforto, para todos nós. Eu nunca tinha tocado baixo ou programado, a sério, uma drum machine. A Joana nunca tinha tocado sintetizadores. E o Jerónimo acho que se esqueceu que tem uma guitarra acústica.
Do que vimos ao vivo, este álbum transmite-nos uns Birds mais seguros de si, a viver mais intensamente o palco, a sacudir de forma ainda mais livre as penas. Este toque rock é mais a vossa imagem sonora?
RJ: O rock é um dos “estilos” que gostamos e que nunca tínhamos propriamente experimentado, enquanto banda. Ao vivo estamos cada vez mais soltos, sim, com mais vontade de correr riscos, de desfrutar do momento. Isto é algo que, além das próprias músicas, a pandemia parece que acentuou.
JC: Contam-se pelos dedos os momentos em que estive livre da insegurança e da pressão de fazer as coisas bem. Tenho de estar focada no instrumento que estou a tocar. É por isso que muitas das vezes tenho de ter o suporte com as letras, é menos uma coisa para me preocupar. As músicas mais calmas também não ajudam: qualquer erro é amplificado na sua simplicidade sonora. Com este novo álbum, as músicas são mais físicas, mais dançáveis na relação corpo-instrumento e acho que isso ajuda a relaxar o corpo e a mente. O rock é uma espécie de Diazepam!
HT: Estou a gostar desta nova reacção do público a esta sonoridade mais rock. Antes o público era mais contemplativo, e com toda a razão, as músicas puxavam mais para um universo introspectivo. Agora, estar em palco e ver o público a entregar-se, mais fisicamente, aos nossos concertos faz-nos dar ainda mais de nós em palco e isso é muito bom. É uma entrega diferente, não desvalorizando a anterior, de ambas as partes.
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