Muhatu ou o mérito das mulheres chefs e a visibilidade da equipa de S[Á]la

O chef João Sá é um pensador ativo em prol de um ofício que se quer repensado a bem do desempenho e da visão do lado feminino na cozinha dos restaurantes. Ao mesmo tempo, debate sobre o intercâmbio entre quem serve à mesa e recebe o cliente. Estamos numa era de mudança?

“Este também foi o motivo pelo qual decidi passar a convidar chefs mulheres, porque, até agora, os eventos são apenas com chefs homens.” A questão é levantada por João Sá, chef do SÁla de João Sá (SÁla), em Lisboa e recentemente distinguido, pela primeira vez, com uma estrela Michelin pelo guia homónimo, a propósito do projecto Muhatu. Esta palavra, originária do dialecto angolano Kimbundu, é pretexto para que seja dado palco às mulheres do mundo da restauração, de modo a que possam trazer “diferentes perspectivas sobre a cozinha”

Delicadeza e sensibilidade são atributos que o chef salienta em relação à mulheres que escolhem ser chefs no âmbito da alta cozinha, além de que “o SÁla é muito feminino, a cozinha é muito sensível, delicada. Portanto, por que não convidar a chef de sala e uma chef mulher, em vez de convidar chefs homens de restaurantes com estrela Michelin”, questiona o nosso anfitrião.

Mais delicadeza e mais sala
Saint Honoré de esturjão e caviar

No contexto do projecto Muhatu, João Sá convidou Arianna Gatti, distinguida com o prémio “Chef emergente” pela revista italiana Gambero Rosso. Ambos conheceram-se através de um amigo comum, o jornalista italiano Gaultiero Spotti, com quem João Sá tinha partilhado a ideia de querer convidar chefs mulheres. Em troca, Gaultiero Spotti prontamente sugeriu o nome da italiana Arianna Gatti ao chef do SÁla. “Tivemos uma reunião e aqui estamos”, acrescenta João Sá, referindo-se à primeira sessão do Muhatu, jantar que teve lugar a 30 de abril, no SÁla.

Parece um processo simples, mas há todo um trabalho de bastidores a organizar e coordenar, como os produtos que são necessários. É de lembrar que houve a necessidade de Arianna Gatti ter a matéria-prima necessária, para replicar os pratos da sua autoria no SÁla, e integrar três elementos da sua equipa na rotina da equipa de cozinha e de sala do restaurante de João Sá, já que trouxe consigo a escanção Elisa Redolfi, o sub-chef e a chef pasteleira do Forme. Esta inclusão tem a ver com outro projecto, o Invisible, criado pelo chef anfitrião, Paulo Amado, editor das Edições do Gosto, e Alejandro Navarro, co-proprietário do Arkhe. A finalidade deste trabalho consiste em dar visibilidade à equipa de sala, que tem um papel igualmente fundamental num restaurante, a par com a cozinha e, claro, o chef.

Neste contexto, Elisa Redolfi faz questão de afirmar “em Itália, nós somos uma família. Metade do trabalho do nosso restaurante é realizado pelo serviço de sala”, frase que teve a aprovação imediata da chef Arianna Gatti. Já durante a tarde tinha havido uma reunião no SÁla, em que foram debatidos temas relacionados com a equipa de sala, no âmbito do Invisible. “Foi uma ideia que surgiu antes do Covid, mas ficou parada, por razões óbvias, e que retomamos agora. Reunimos profissionais de sala e discutimos temas que estão relacionados com o serviço, como a postura, a fala, a postura corporal, a comunicação, o acolhimento”, esclarece João Sá. No fundo, é dar (mais) visibilidade aos empregados de mesa, aos escanções e ao chefe de sala.

A primeira chef Muhatu 

Arianna Gatti nasceu em 1991 em Forme, no município de Massa d’Albe, Abruzzo, tem 32 anos e, há um ano, abriu o restaurante Forme, em Brescia, no Norte de Itália. Assume-se como chef desde então, já que, antes, tinha desempenhado, por dez anos, o papel de sub-chef, no Miramonti l’Altro, em Cocesio, Brescia, também em Itália.

A cozinha do Forme é “tradicional e inovadora”, afirma Arianna Gatti, isto é, exprime o sabor da tradição através da contemporaneidade, tal como está descrito no site do restaurante Forme, onde a chef italiana cruza a culinária de Bescia e Abruzzo. Produtos locais do Lago Garda – o maior lago de Itália, localizado no norte do país, entre as regiões da Lombardia, Vêneto e Trentino-Alto Adige – e da região onde nasceu cabem na cozinha do seu espaço de restauração. 

Cabra, cordeiro, queijo Pecorino, caracóis, que são típicos de lá, anchovas do Lago Garda, agretti, vegetal também conhecido como “barba de frade”, são produtos nomeados por Arianna Gatti. Ao contrário do que supostamente poderíamos pensar, o uso do azeite é nulo na cozinha do Norte de Itália. “Em Brescia usamos muita manteiga”, declara a chef italiana, referindo-se à influência francesa recebida ao longo de uma década no Miramonti l’Altro.

Sensibilidade primaveril em dez actos
Truta, alperce, ostra e agretti

Depois das boas-vindas protagonizadas por um Ferrari Perlé da colheita de 2017, feito a partir de Chardonnay e produzido pelo método clássico ou champanhês (champanhoise), chegou o momento de sentar à mesa do SÁla. O objectivo foi conhecer o trabalho que Arianna Gatti implementa no Forme, bem como o do chef João Sá, através de um menu de dez momentos, em que os pratos do anfitrião foram harmonizado com os vinhos italianos e os pratos da chef convidada tiveram a companhia de referências vínicas produzidas em Portugal. A seleção vínica esteve nas mãos de Maria Laura Vítor, escanção do SÁla, e Elisa Redolfi.

No primeiro momento, a viagem gastronómica envolveu a delicadeza comum entre os pares na cozinha do SÁla, ou seja, entre os chefs Arianna Gatti e João Sá. Desde o Saint Honoré, receita original da cozinha francesa, aqui com esturjão e caviar, com a leveza como manda a cartilha à rabana com foie, fígado de tamboril e especiarias do Bolo-de-Mel da Madeira, passando pela espetada de caracóis e morriles, receita de truz da convidada, e pela dupla gamba listada e barriga de atum.

Ervilha-lágrima e ouriço-do-mar

De Itália veio o prato que reuniu a truta marinada, a marmelada de pêssego, as ostras, a beurre blanc e as ovas de truta, que conquistou à primeira garfada. No copo, esteve o Granito Cru 2020, vinho de Luís Seabra feito a partir da casta branca Alvarinho, na região do Dão. Similar sensibilidade na sintonia de sabores esteve João Sá, com ervilha-lágrima e o ouriço-do-mar, cúmplices na simplicidade e na perfeição. Para combinar com o prato, foi servido o Borgonho branco 2022, feito a partir da casta Derthona, pelas mãos de Giácomo Borgonho, na região de Barolo, no Noroeste de Itália.

Canelloni Primavera

Primorosos foram também os canelloni primavera de Arianna Gatti. A composição inclui os queijos Ricotta e Pecorino, espinafres, favas, verbena e água de tomate, “para enriquecer o pratos. É um prato feito pela mãe de Arianna”, diz-nos Elisa Redolfi, e que a chef trouxe, para celebrar a primavera, acrescentamos nós, com Alcunha branco 2017,  de Miguel Louro, que escolheu a casta Rabigato para a feitura deste vinho.

Choco latte

Das mãos da equipa do chef João Sá sai o choco latte, versão gastronómica de choco cozinhado a baixa temperatura com leite e café, um portento de sabores combinados com Damijan Nekaj 2019, vinho branco de curtimenta do produtor Damija Podversic, de Gorizia, na região raiana de Friuli-Venezia Giulia, que faz fronteira com a Eslovénia. O anfitrião assina ainda o Lavagante azul, com uma espécie de caldeirada de enguias, servido com Arpepe Sassella Rocce Rosse Riserva 2016, um tinto de pouca extração, que conseguiu fazer frente ao picante q.b. deste prato. 

Codorniz, espargos selvagens e pimento verde

Codorniz, espinafres selvagens – loertis, nome atribuído pelos italianos a este espécie de espargos – e pimento verde, prato de de Arianna Gatri, com molho de manteiga e cerveja. Eis o ponto de ligação com o Poeirinho Garrafeira tinto 2012, vinho de Dirk Niepoort produzido com a casta Baga, da Quinta de Baixo, na região da Bairrada. 

Beterraba e vinagre

De Itália, a chef desafiou os presentes com uma refrescante pré-sobremesa feita com matcha, yuzu e zimbro, seguindo-se a sobremesa de João Sá, protagonizada pela beterraba e pelo vinagre, na qual não faltou o chocolate, para fazer a ligação. No copo esteve o VinSanto Del Chianti Il Nostro 2004, fortificado elaborado com as castas Malvasia Bianca, Trebbiano Toscano e San Colombo, da região da Toscânia.

A equipa da noite de 30 de abril de 2024 no Sála marcada pela primeira edição do projeto Muhatu

No final desta primeira edição dos jantares Muhatu, João Sá reuniu, na sala, toda a equipa que esteve a trabalhar nessa noite, para mostrar quão importante é cada elemento de uma equipa num restaurante. “Temos ainda de desbravar caminho relativamente a uma profissão que, se calhar, ainda não tem tanta valorização profissional, daí a ideia de trazer chefs de sala, para fomentar o mesmo intercâmbio que os chefs já têm há muito tempo, mas que não acontecia com os profissionais de sala”, sublinha o chef anfitrião, que, deste modo, está a abrir um novo caminho na discussão inerente ao serviço na restauração. Estamos numa era de mudança?

Quanto à segunda edição de Muhatu, está agendada para 21 de maio e terá a presença de uma chef de Espanha. Em junho será a vez de uma chef de França e, para o final do ano, “Ásia [risos]. Não sei, vamos ver”, remata o chef João Sá. Até lá, o SÁla de João Sá permanece de portas abertas de terça-feira a sábado ao jantar e à sexta-feira e ao sábado ao almoço.

Bom apetite!


SÁla de João Sá
© Fotografia: João Pedro Rato

Legenda da foto de entrada: As escanções Elisa Redolfi e Maria Laura Vítor, o chefe de sala Francisco Cunha e os chefs João Sá e Arianna Gatti

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