Fremont (2023)

Fortuna no infortúnio

Fremont, de Babak Jalali
|DA VAGA DE SALA – Outsiders | Ciclo de Cinema Independente Americano

Depois de 2024 – para ver e escrever sobre The Grief of Others  (2015)  [O Luto dos Outros], de Patrick Wang -, o NA VAGA DE ROHMER  decidiu repetir o salto ao Outsiders |Ciclo de Cinema Independente Americano, cuja edição deste ano decorreu de 11 a 16 de Março, no Cinema São Jorge. Ser realizado por um iraniano – ainda que tenha emigrado para o Reino Unido com tenra idade – e ter ganho o Prémio John Cassavetes (galardão atribuído ao melhor filme cujo orçamento não excede 1 milhão de dólares) nos Film Independent Spirit Awards 2024 foram os argumentos que pesaram na escolha de Fremont (2023), de Babak Jalali, para visionamento, por entre os demais filmes na programação. Fremont é o nome de uma cidade na Califórnia, nos Estados Unidos, com uma forte presença de comunidade asiática, e, desde o período da Guerra Fria, após o eclodir do conflito no Afeganistão entre 1979 e 1989, tem vindo a ser um lugar de acolhimento preferencial para imigrantes/refugiados afegãos. Provavelmente por ambos os países terem vivido guerras demasiado longas, ambos com interferências internacionais, provavelmente por ambos os povos serem obrigados a fugir do país natal para escaparem da morte, comecei a ver Fremont lembrando-me dos refugiados sírios que vieram habitar aquela terra no norte de Inglaterra em ‘O Pub The Old Oak’ (2023) , de Ken Loach. Uma certa partilha de semelhanças no semblante das duas protagonistas de cada filme, reverberando em ambas as jovens mulheres – a síria no filme de Ken Loach, a afegã no filme de Babak Jalali – uma força e resiliência similares, terá provavelmente contribuído mais ainda para essa viagem até ao ‘O Pub The Old Oak’; o próprio cenário laboral de desumanização e de atomização do trabalhador, com o consequente desenraizamento social, o isolamento, que é retratado no filme – a sequência inicial de  Fremont põe-nos a olhar com a protagonista fixamente para a linha de produção da fábrica chinesa (de biscoitos da sorte) – transportaram-me num sentido mais lato para o cinema de Loach.

Todavia, contrariamente ao que observamos em ‘O Pub The Old Oak’, em que Loach investe claramente na exploração da vida comunitária, assente no (des)construir de relações entre as duas comunidades – os nativos britânicos e os imigrantes sírios -, Fremont debruça-se mais no plano individual, de Donya (Wali Zada)  – a jovem afegã que era tradutora do exército norte-americano no Afeganistão – até aos demais seres individuais, solitários como ela, com quem se vai cruzando, à vez. Portanto, ainda que seguindo caminhos diferenciados no fio condutor da narrativa, ou seja, Loach a extravasar no seu filme a problematização social da integração de imigrantes/refugiados – não se furtando a expor a xenofobia, o racismo, o ódio – que está hoje na ordem do dia no Ocidente, como tão bem sabemos, e, por sua vez, Jalali a colocar imigrantes/refugiados afegãos e nativos americanos em reflexo num espelho da solidão, uma ferida que vai alastrando de forma transversal na sociedade contemporânea do mundo ocidental, na verdade, quer um filme que outro, no final, fazem a apologia da partilha, da união, entre povos e culturas, quer num plano comunitário, quer num plano mais individual.

É através da escrita de uma língua que domina (o Inglês) que Donya consegue uma promoção na fábrica de biscoitos da sorte – aqueles que se comem nos restaurantes chineses após as refeições e que trazem agarrados uma mensagem de fortuna -, da linha de produção em massa de biscoitos passa para uma outra linha de produção, também ela em massa, de escritos, bilhetinhos da sorte. Uma tarefa que exige inspiração e cabeça fresca, assim explica o bonacheirão dono chinês, cuja bonacheirice esconde o implacável pragmatismo chinês na extração de rendimento, obviamente com os menores custos possíveis, e, como tal, oferece a Donya uma daquelas geringonças para massajar a cabeça; pelo menos foi uma oferenda, ao contrário do café servido pela patroa – sem as mesmas competências sociais do marido – em substituição da máquina avariada. Mais à frente, será pois a patroa chinesa, num pragmatismo absolutamente implacável,  ou seja, uma chinesa a ser chinesa, que ditará a fortuna (sorte, no caso) no infortúnio da mensagem sem remetente que o bilhete de Donya, num dos milhares de biscoitos, produziu. Até aí chegar, à fortuna, que veste fato-macaco de mecânico, um dos solitários nativos, Donya vai coabitando com outra solitária nativa, a colega da fábrica, que vai procurando a sua sorte em sucessivos (e supostos, porque não vemos, só ouvimos falar de) dates, infrutíferos por sinal, levando a que a esperança comece a esmorecer: cabe a Donya animá-la. Talvez a sina da colega seja comer mais um biscoito, assim diz a mensagem do biscoito que o médico (mais um solitário nativo) lê a Donya em voz alta, desconsolado, após uma luta voraz de dentes para abrir a embalagem. Um médico que diz oferecer algumas consultas pro bono a quem não tem seguro de saúde – e quanto ele custa nos Estados Unidos -, a quem Donya recorre para obter medicamentos que a ajudem a dormir, mas que, rapidamente, se transforma numa sequência de consultas de psicanálise mútua, numa cadência e tom inusitados, com notas de nonsense que nos fazem (sor)rir, a nós, espectadores, já que Donya mantém-se sempre com aquele ar imperturbável, de rigidez. Entre os afegãos, também só sobram solitários: o senhor mais velho do restaurante onde Donya come a bucha enquanto ele vê a série ou telenovela afegã, pois já não vale a pena ver as notícias, “todos dão cabo do nosso país e nunca ninguém se responsabiliza”, diz ele; o vizinho fumador que sonha com as estrelas do céu de Cabul no corredor/varanda exterior e comum das casas, ou cubículos melhor dizendo, onde Donya e outros conterrâneos vivem; e ainda a amiga, mãe de um recém-nascido, cujo marido brusco e silencioso não quer conversas dela com Donya.

Até o preto e branco do filme, até a câmara que se cola por vezes à nuca de Donya, no seu caminhar solitário, parecem adensar a solidão expressa por Donya e por todos os outros, e com a solidão uma tristeza e falta de esperança subjacentes. Parece que o filme só ganha cor – apesar de se manter sempre a preto e branco – quando Donya agarra o volante do seu destino e esbarra no mecânico solitário que até está a pensar contratar alguém para poder mandar conversa fora – dores de solidão -, até que para isso tenha de reivindicar o pretexto da responsabilidade e garantia de segurança que um homem só não pode assegurar: seja mecânico, piloto ou cirurgião! É um solitário inconformado a falar para uma solitária que não quer conformar-se. E naquele plano derradeiro do filme, só me ocorre acompanhar aquela imagem com esta expressão: “Há comboios que só passam uma vez na vida”.

Fremont, de Babak Jalali (2023)
Visionado no Outsiders
  | Ciclo de Cinema Independente Americano, Cinema São Jorge