Contra as evidências das imagens proporcionadas pelos órgãos competentes, que ainda agora nos querem provar que não existem vacas brancas com cabeça azul através do elenco exaustivo de exemplares arrancados à realidade, quero demonstrar-vos que, precisamente, apenas existem vacas brancas com cabeça azul aqui onde vivemos.
Um/a artista, mesmo, é alguém que deseja, ardentemente, inscrever uma fenda na realidade, não para criar buracos negros, nem poços sem fundo, mas sim para incandescer o real. Neste desejo a luz é fundamental, mesmo que estejamos de olhos fechados porque, aí, sente-se o calor, a temperatura, tanto cálida como efervescente, de uma mirada infinita. Ninguém se mantém vivo conservado em formol, e, no entanto, é este líquido asséptico e gélido que nos querem propor em diversas situações e por diferentes meios: seja através dos noticiários, seja através, pasme-se, da arte. Todos os dias, a todas as horas, querem meter-nos coisas pelos olhos adentro, e abrem-nos ainda as goelas para injectar-nos papas, com tudo já muito mastigado.
Dão-me a escolher, sim, porque é preciso escolher, claro, e valorar, também, já que não existe, evidentemente, uma equivalência de tudo a tudo, e não é por ser mais actual, e estar assim conivente com o ar da arte contemporânea, o qual, sinceramente, já não se sabe de onde vem ou onde está (Marcel Duchamp ainda levou um pouco de ar de Paris para os EUA), que se sobrepõe a algo do passado, estando por tal mais vivo; dão-me a escolher, repito, entre Marc Chagall e a sua vaca branca com cabeça azul e Damien Hirst e as suas vacas seccionadas, e eu não hesito: Marc Chagall e a sua vaca branca com cabeça azul. As obras de arte são análogos do ser humano, porque condensações intensas de experiências em potência, e têm implícito um espaço utópico, sempre, onde quem frui se projecta pelo encaixe; repare-se que não se trata de uma projecção de um “eu”, ou seja, de uma operação essencialmente mental, não, trata-se de a obra resgatar fisicamente quem a está a fruir, transportando corporalmente. Por tal, as fendas que as obras de arte abrem são simultaneamente acessos a paisagens que criam mundo. Ora, pergunto-vos: que mundo criam as vacas seccionadas de Damien Hirst? Não sei, não vejo nenhum, a não ser a desagradável sensação de eu própria permanecer mergulhada em formol.
Claro que não defendo que o/as artistas devem hoje correr a pintar vacas brancas com cabeça azul, até porque elas existem: Marc Chagall já o fez, e muito bem feito. O/as artistas, por outro lado, devem sim ter um conhecimento sólido da arte do passado, precisamente para encontrarem, e desentranharem em si, a diferença; mas do/as artistas nós esperamos que abram fendas na realidade, e que nos teletransportem, intensificando o real. Pergunto-vos: que sentido poderá ter a exposição de um cavalo morto numa galeria de arte, contemporânea? Se se pretende denunciar uma situação de abuso relativamente ao animal, então, não será mais lógico e edificante colaborar com uma causa que os proteja directa e efectivamente? A arte cria uma natureza de terceiro grau. A primeira natureza é aquela a que todo/as pertencemos sem excepção, e que, todavia, alguns, muitos, pretendem ludibriar, ao ponto de estarmos prestes a cruzar um grilo com um cão; a segunda natureza é a cultura, que bastas vezes trai a primeira; a terceira é a arte. Na arte sempre se libertaram os monstros que na natureza de primeiro grau se deveriam deixar bem sossegados, embora não seja isso a que hoje assistimos, e sempre se conciliaram os anjos para nos sussurrarem ao ouvido.
Fui agora à janela e, garanto-vos: vi uma vaca branca com cabeça azul. Note-se que estava de olhos bem abertos.