Se Walter Benjamin foi buscar a Paul Klee o anjo alucinado, que transmutou no da História, Marina Abramovic “pediu” a Benjamin a visão corporizada de um passado carregado de destroços.
É diferente olhar o passado a partir de um lugar ou, ao invés, meter-se dentro dele. E meter-se dentro do passado significa selar o tempo todo: por isso é que o passado pode meter medo. Marina Abramovic conta que, perante as suas dúvidas quanto ao que fosse criar e a própria arte, um dos seus professores iniciais elucidou-a: é quando algo se instala, seja uma pergunta, seja uma vontade ou uma necessidade, e exige, mesmo perante a insónia e o jejum, concretizar-se. Existem, contudo, diferentes formas de corresponder a um apelo tão vital; não irei escolher a melhor, antes tentar dar-vos e dar-me palavras. Porque, como defendeu Etty Hillesum: “Se sofro pelos indefesos, não sofro pelo que há de indefeso em mim?”
O odor nesta intervenção de Marina Abramovic seria, e foi, insuportável. Balkan Baroque data de 1997, decorreu durante quatro dias seguidos, com uma duração de seis horas em cada um deles e recebeu o Golden Lion da Bienal de Veneza. Apresentava três vídeos – um dedicado ao Pai de Marina e outro à Mãe, e o do centro incorporava a artista, que nele detalhava crueldades também relacionadas com a guerra ocorrida nos Balcãs. Num plano inferior relativamente à projeção central permanecia uma pilha de ossos de vaca, sobre a qual Marina Abramovic se sentava e limpava com uma escova, osso por osso. A existência das projeções de vídeo em número de três, e devidamente alinhadas em alusão cruciforme, automaticamente nos exige inscrever esta obra na linhagem dos trípticos na pintura, desde a origem cristã primitiva, passando pela Idade Média toda e Renascimento, e continuando ainda a operar no século XX. Feita esta inscrição, será necessário ressaltar a narratividade que se associa ao tríptico: portanto, Balkan Baroque conta uma história sobre a guerra, dos Balcãs, por um lado – através das imagens colocadas superiormente; da morte, por outro – através da instalação e performance que decorre no plano inferior. A morte vem assim infiltrar-se no solo de onde a vida, tanto irrompe, como se finca: quem assistiu à intervenção de Marina está nesse mesmo plano, artista e espetadores coexistem na violência, nos despojos que a pilha de ossos encarna e que representa, simultaneamente.
A narratividade subjacente em Balkan Baroque exige colocar a memória no cerne da nossa vida, e morte: porque narrar não se trata de enumerar dados, mas antes de condensar a experiência – que é, tão-somente, o que nos acontece, e onde acontecemos. Para que a memória opere em todo o seu esplendor, minúcia, seleção e sentido, Marina Abramovic mostra aqui que a arte ocupa um lugar primordial, de que não podemos nem devemos prescindir. Na verdade, o plano inferior e de chão desta obra de Marina é um quadro-vivo, que necessita da confirmação do plano superior, onde se condensa o movimento geracional – com Pai, Mãe e Filha. Sobre o intenso e putrefacto odor presente na obra, e que se foi naturalmente agravando à medida que as horas e os dias certamente passavam, podemos aludir ao olfato como o sentido mais rasurado na nossa cultura Ocidental. A visão está desde os primórdios associada ao Logos; a audição interpenetrou-se com a “escuta” cristã; o paladar vem laçado com a questão do “sabor” e entrelaça-se com o “gosto”, também na Estética; o tato invoca a proximidade, e emula-se no “tocar” e no sentir-se “tocado”, sinais de edificação, tendo ainda, como questão concetual, vindo dialogar com a visão; já o olfato permanece como uma espécie de pária, pela sua conotação excessivamente animalesca, creio. Balkan Baroque aconteceu em 1997 e dá-nos um faro inequívoco para agora.