“Senhora e Gato Preto”

Trata-se de um desenho devido a Manuel Filipe, pintor do neo-realismo português, e que faz parte da “fase negra”, a primeira das três em que se divide o seu percurso, por ele mesmo assim intitulada e que se remete à década de 40 do século XX. 

Gilles Deleuze alertou-nos de que não existe uma tela em branco enquanto espaço eminentemente virginal ou de baixa densidade no que toca à visibilidade, o que se adequa também à folha, em branco: o que nelas se detecta é o ilimitado, o todo, o tremendamente todo. Na verdade, se numa tela ou numa folha se deixar registado um traço, um único traço de fuga, e uma palavra que alimenta, já é de valor. Portanto, quem pinta ou quem escreve debate-se com esse abismo de ter de entrar na tela e na folha por um ponto, por um flanco, digamos assim: e dar forma, então, a algo que pulsa o que vai poder ser visto e lido. 

Neste confronto, e no que toca propriamente às mulheres, não existe nenhum conforto ou desígnio de inclusão. Porque cada letra escrita e cada traço desenhado são, tão-somente, as precárias linhas com que as mulheres tentam alinhavar um Mundo desconchavado e hostil, que as trai continuamente, que as rechaça a todo o momento, que as humilha sem piedade. O facto de algumas mulheres exercerem o seu mester com garra e pusilanimidade não deverá ocultar que a grande traição dos tempos sempre se dirigiu aos valores femininos, e assim continuará. Ser nunca o é no vazio, porque é-se: e é nesta reflexividade inicial que automaticamente avulta o luminoso corpo das mulheres, com a sua marca de suporte. Por tal, a realidade começa, continua e avança a partir do “dois” e nunca do “um”.

Ainda, cada letra escrita que alimenta e cada traço desenhado que proporciona uma fuga são, também, as andas de que as mulheres se valem para tentarem demonstrar ao Mundo como a verticalidade, que já envergamos, pode e deve chegar aos céus, tal como as crianças todas que nasceram provieram do segredo incrível que o seu corpo detém. No entanto, em tempos de guerra e de chumbo a tenra carne dos corpos humanos adquire o carácter de obsoleta e remete-nos para campos fumigados pelo ódio: campos onde o corpo capitula e onde o espírito, tal e qual aquelas almas expelidas pelos moribundos que foram desenhadas nas pinturas antigas, sai do corpo e não sabe para onde deve dirigir-se, porque a gravidade terrestre colapsou. 

E em todo o caso, em tempos de guerra e de chumbo, em tempos de cortinas férreas recolhidas por figuras tétricas e lúgubres, por algozes, tanto estrambelhos como cruéis até à medula, é dever, nem sempre fácil, desferir um traço e deixar gravada uma palavra, porque exige-se que testemunhemos. Enquanto nos campos de morte, tanto efectivamente a física, como na que cerca o espírito e o drena, se abatem os homens, é dever não deixar que se esqueça um sorriso firme, uma linha de prazer, uma delicadeza suave, o endereçamento sempre doce e terno que nos devemos como humanos. Deixar cravados no tempo estes sinais de fumo significa laborar no amor e por amor, tornando-nos cativos e cativas de um estofo de Mundo, de algo que permanece no âmbito do inconsciente da Terra. 

Assim como se esventra a Terra para lhe retirar as riquezas minerais que suportam a vida moderna, tal como cavalgam desgovernadas através do ar que circunda o nosso planeta as camadas digitais de informação e de ódio, devem vogar paralelamente os sinais da amizade e do amor que desintoxicarão o espaço e o tempo.