'3 Rostos', de Jafar Panahi

Três mulheres, três tempos, três sombras

‘3 Rostos’, de Jafar Panahi
| DA VAGA REALIZADOR DO MÊS

É verdadeiramente incrível a preponderância do carro no cinema iraniano. Muitas vezes, em certos filmes, chega mesmo a parecer tão relevante como a câmara no processo de criação da obra. Mobilidade, liberdade, resguardo, intimidade, autonomia, tudo isto o carro concede, mas também funcionalidade, transformando-se numa âncora de suporte da câmara, para esta alternar entre travellings, planos fixos, de interior (do carro) ou de exterior (da rua). Com Asghar Farhadi, em ‘À Procura de Elly’ (2009), é no carro que vemos a alegria (inicial) esfusiante do grupo de amigos que vai fazer uma escapadinha até ao Mar Cáspio e é também no carro que a tensão se agudiza e ganha rosto com a chegada do noivo desesperado; e em ‘Uma Separação’ (2011) é o vidro do carro que racha perante o confronto final entre a verdade e a mentira, isto após andarmos nele várias vezes ao longo do filme. Para dar só dois filmes-exemplo, saltemos para o cinema de Mohammad Rasoulof  e em ‘O Mal não Existe’ (2020) é dentro do carro pelas ruas da cidade que o primeiro homem-protagonista se dissolve nos verdes e vermelhos dos semáforos, ou da farmácia, numa imagética cromática que o persegue; e é também dentro do carro, que não pode (legalmente) conduzir porque não tem carta de condução, que o derradeiro homem-protagonista procura no meio das montanhas encontrar forma de dizer a verdade à filha; também no recente ‘A Semente do Figo Sagrado’ (2024) Rasoulof entrega ao carro a viagem inicial do protagonista rumo ao templo no deserto rochoso para fazer a oração de agradecimento ao ordenamento profético. Todavia, é em ‘Taxi’ (2015), de Jafar Panahi, que o carro ganha uma dimensão superlativa, ao transformar-se no próprio filme: tudo que vemos, tudo que acontece, é no seu interior ou captado no exterior a partir da câmara que está dentro do carro, em andamento ou parado – o modus operandis (im)possível para quem está proibido de fazer filmes pelo regime iraniano, além de estar proibido de sair do país. Mas o carro já vem de trás no cinema iraniano, e Abbas Kiarostami, quiçá o seu mestre maior, fez uso intensivo do carro naquela desenfreada busca existencialista da morte pela vida em ‘O Sabor da Cereja’ (1997);  porém, mesmo com presença não tão proeminente do carro, foi em ‘Através das Oliveiras’ (1994 [Kiarostami])  – a começar no travelling dianteiro a partir do para-brisas do carro, na incerteza trilhada pela estrada de terra batida – que pensei, ao ver ‘3 Rostos’, de Jafar Panahi (ele que foi assistente de realização de Kiarostami  nesse filme).

E há pelo menos outros dois momentos que me transportaram de ‘3 Rostos’ para ‘Através das Oliveiras’: um plano fixo do alpendre da casa da mãe da jovem Marziyeh, onde vemos o próprio Jafar Panahi e Behnaz Jafari – todos os protagonistas assumem no filme as suas verdadeiras identidades, diluindo significativamente a fronteira entre realidade e ficção, como é apanágio do cinema de Panahi  -, lado a lado, em busca de respostas sobre o paradeiro de Marziyeh  – fizera e enviara um vídeo a suplicar pela ajuda da atriz Jafari, culminando num suicídio (real?) por enforcamento -, ela (Marziyeh) que representa o futuro no filme, o futuro das mulheres iranianas em geral, o futuro das atrizes do Irão em particular; num enquadramento similar, em ‘Através das Oliveiras’, o par de protagonistas do filme dentro filme (naquela sucessiva repetição de takes) ensaiam respostas para uma vida a dois num futuro. O segundo momento é inevitavelmente o derradeiro plano de ‘3 Rostos’, ao longo de sensivelmente quatro minutos (duração semelhante ao plano final do filme de  Kiarostami), Panahi  estaciona a câmara no carro num ponto relativamente alto da montanha, transpirando um plano geral com relativo horizonte, onde Jafari, primeiro sozinha, e depois acompanhada pela sua ‘discípula voluntária’, Marziyeh, caminham juntas pela estrada de terra batida, já com música, que se ouve pela primeira vez no filme, até desaparecerem da vista na última curva, um pouco à semelhança do término de ‘Através das Oliveiras’, em que o par (o pretendente e a amada) se transforma, à distância, em duas pintas brancas, até se dissiparem por completo no horizonte longínquo.

Sendo Marziyeh o rosto do futuro – uma jovem que quer ser atriz, passou numa audição, mas a família, dela e do noivo, opõem-se vigorosamente -, a conhecida atriz Jafari é o rosto do presente e, na companhia de Panahi, numa longa viagem de carro desde Teerão, um rosto que a câmara aproxima, e onde repousa, estrada afora, evidenciando agonia e impotência, e uma certa responsabilidade, perante a presumível tragédia, em contraponto com a habitual serenidade do já bem calejado Panahi. Montanha acima, num Irão remoto, profundo, rural, algures perdido entre a fronteira com a Turquia e o Azerbaijão, o carro de Panahi  e Jafari, que acelera para socorrer o futuro, vai tropeçando sucessivamente num tempo passado. “Todos temos de ir, mais tarde ou mais cedo”, diz o velho aos dois protagonistas quando estes recusam o convite para chá, é o fado da morte, profundamente cavado pela velha que repousa durante o dia na cova que abriu para si, iluminando-a com uma lanterna à noite – mais à frente, já no escuro, essa lanterna servirá como iluminação para o filme num plano de noite cerrada em que o buraco emana a luz que descortina o corpo de Jafari. O ultraconservadorismo religioso está ancestralmente enraizado, tendo na circuncisão e no consequente destino do prepúcio uma crença inabalável; num momento sui generis  de crítica subliminar ao regime teocrático iraniano, Jafari diz ao velho diz ao velho, que a encarrega de entregar o prepúcio do filho (acabado de ser circuncisado) a Panahi para depois chegar até ao consagrado ator Behrouz Vossoughi (86 anos)que tal não será possível, pois esse ator vive no estrangeiro e não pode vir ao Irão, bem como Panahi não pode ir ao estrangeiro – ambos impedidos de entrar e sair do Irão, respetivamente, pelo regime -, levando o velho a questionar o porquê; do rosto de Jafari só sai um silêncio hesitante: eis as linhas vermelhas que o cinema de Panahi não pode mesmo ultrapassar, até porque, recordemos, continua proibido de fazer filmes. E a obsessão com a figura de Vossoughi está ligada à desejada transmissão de virilidade do ator ao filho do velho, e aí lembramos uma cena anterior do filme em que o touro reprodutor, que cobre todas as vacas da terra, adoeceu no meio da estrada, pelo que, pela preservação de tão valiosa virilidade, ninguém passa até o veterinário chegar ao local. E ainda sobre virilidade, já depois de entregar o prepúcio a Jafari, o velho ainda esboça uma tentativa de dar abrigo à bela e solteira atriz.

Numa terra em que há trabalhos que não são para mulheres, mesmo que seja pegar numa pá para alargar a estrada e assim aumentar a visibilidade para os carros, o conservadorismo dita as leis, por mais anacrónicas que sejam. E é refém do seu passado, enquanto atriz que cantava e dançava em filmes feitos no período que antecedeu a Revolução Islâmica, de 1979, que Shahrzad  vive naquela comunidade, ostracizada, como uma figura de imoralidade, de onde emana um mal que corrompe, agora, a jovem Marziyeh. Com Shahrzad chegamos ao terceiro rosto no feminino, o rosto do passado que se quer apagar; junto à (sua) pequena casa isolada emana uma luz parca de um candeeiro – a luz que Panahi  observa ao longe, no carro estacionado, vestindo naquele momento o fato único de realizador, de quem cria e mostra, deixando o palco para as três, as três mulheres, as três atrizes, do passado, do presente e do futuro do Irão, mesmo que as vejamos juntas, as três, apenas como sombras, sombras que dançam por trás da cortina.

3 Faces, de Jafar Panahi (2018)
Visionado em Filmin Portugal