‘A Romancista e o seu Filme’, de Hong Sang-soo
| DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
Se alguma vez na vida fizesse um filme, seria certamente num jardim/parque. Escolheria o Parque Güell, em Barcelona; escolheria o El Retiro, em Madrid; escolheria a Villa Borghese, em Roma, e claro, escolheria o Jardim da Estrela, em Lisboa. São particularmente as manhãs invernosas e outonais, de segunda a quinta-feira – expurgando assim a agitação, a balbúrdia, os aglomerados de gente das sextas-feiras, dos fins-de-semana, tão contrastantes com a serenidade -, que me fascinam no Jardim da Estrela. Basta apenas arrumar o telefone no bolso, mover os olhos com abundância, rodar a cabeça, lentamente, para os lados e para cima, e pedir ao cérebro para entrar em modo esponja daquilo que vai sendo observado: haverá repetições, de um dia para o outro, mas será sempre uma nova história que teremos pela frente. Esta manhã, por exemplo, para lá dos visíveis efeitos da tempestade (a depressão Martinho) sobre as árvores, lá voltei a ver a mesma (velha) senhora que todas manhas, invariavelmente, percorre todos os bancos do jardim – em modo inspetora, só lhe falta a lupa e o detetor de metais – em busca de moedas, ou notas, caídas e esquecidas por outros – no dia anterior, orgulhosamente, mostrara-me que tinha acabado de encontrar uma moeda de 50 cêntimos. Voltei a encontrar um senhor de boné a dormitar num banco, mas, desta feita, não era o mesmo senhor de que falei no escrito de ‘O Dia Seguinte’ (2017) . Voltei a ver uma outra senhora habitué no jardim, a correr às voltas com o cão, que, velho e cansado, tenta não perder o rasto da dona. Voltei a ver uns corajosos – presumivelmente turistas, tal como no dia anterior – a beberem canecas de cerveja ainda a manhã ia a meio. Mas vi também uma adolescente ceder a perna, como apoio, para apertar o sapato da outra (adolescente); vi também duas crianças a saltarem alegremente numa poça de água lamacenta, com a feliz complacência da adulta que as acompanhava – lembrei-me aqui dos anúncios da Neoblanc (passe a publicidade) no século passado. Vi também uma jovem a passar a língua pela mortalha após enrolar o cigarro – uma raridade por estes dias. Realizadores que me leiam: façam um filme no Jardim da Estrela, não um documentário, mas sim a realidade a roçar a ficção (como disse Chantal Akerman sobre o filme D’Est [1993] ), ou uma história simples que não impeça a emergência de coisas reais, como ouvimos a protagonista dizer, ou explicar, que filme pretende fazer em ‘A Romancista e o seu Filme’ (2022), de Hong Sang-soo.
Quando a câmara de Hong Sang-soo decide começar um plano no parque/jardim a partir do desdobramento de um zoom in – numa mesa de piquenique onde dois ‘estranhos’ parecem almoçar – em zoom out, em ligeira panorâmica, abrindo assim a imagem que nos permite ficar atrás dos três protagonistas – a romancista (Lee Hyeyoung), a atriz (Kim Min-hee, uma das figuras mais presentes na filmografia do cineasta sul-coreano), que a romancista acabara de conhecer pessoalmente no parque, mas cuja admiração mútua já existia, e o estudante de cinema (Ha Seong-guk), sobrinho do marido da atriz – que ao longe olham, os três, para a referida mesa e começam a cheirar, a falar sobre comida e a salivarem por um ramen, que rapidamente terá lugar de seguida na mesa de um restaurante, isto enquanto, com toda a profundidade de campo, podemos ver as múltiplas árvores esguias e despidas a estenderem-se ao longo parque, onde as folhas caídas cobrem o chão, eis que o filme se eleva a um pedestal distintivo. Este plano magistral, incluindo o enquadramento, condensa toda a genialidade do cinema de Hong Sang-soo: assente em simplicidade, observação daquilo que nos rodeia, intromissão da realidade do quotidiano, e estética prodigiosa. Precisamente antes deste plano memorável, a romancista explicava à atriz e ao estudante de cinema a sua vontade, e sonho acima de tudo, em fazer um filme, contando com a expertise de cada um deles para a ajudarem a realizar uma curta-metragem, precisamente ali, naquele parque, por onde agora se passeiam. E quando a ouvimos falar sobre a sua ideia para o filme, e o desdobramento da mesma, é como se ela estivesse a verbalizar e a partilhar de viva voz a forma como o próprio Hong Sang-soo vê, concebe, idealiza e pratica o cinema.

É definitivamente ancorado na observação do que se dá, vive e está à sua volta, nessa magia do quotidiano, da realidade a acontecer, que o cinema de Sang-soo encontra a harmonia, o seu habitat, deixando depois que as emoções e os diálogos brotem de forma absolutamente natural. É a observar pelos binóculos no interior do edifício-torre que vemos a romancista deitar olho ao parque/jardim cá em baixo e à boleia de um zoom in lá vamos nós também voando, como quem vai aterrar, lentamente, junto às árvores, onde as pessoas se passeiam, entre elas a atriz, com quem viria depois, por acaso, a cruzar-se. Através daqueles foscos e opacos vidros das janelas do edifício-torre, assim potenciados pelo preto e branco, nada conseguimos ver para o exterior, mas eles, os protagonistas, veem e comentam, por entre a conversa que se vai desenrolando. Mas o preto e branco que nos tira a vista para o exterior, ao mesmo tempo, faz reluzir o brilho do novo e bem tratado chão, permitindo-nos percecionar o dia solarengo que se faz lá fora, cujos raios de luz fazem do chão espelho.
E se é verdade que em ‘A Romancista e o seu Filme’ não se dão as habituais e identitárias repetições de cenas do cinema de Sang-soo, com ou sem ligeiras nuances, as repetições ganham forma nas conversas, com a romancista a ser apelidada de carismática em momentos diferentes, por pessoas diferentes, em diálogos diferentes, ou até a forma idêntica com que a romancista é elogiada e reconhecida quando a funcionária da amiga dona da livraria, primeiro, e a atriz, depois, conhecem-na pessoalmente. E com o evoluir da narrativa, observamos a realidade circular – tal como em ‘O Dia Seguinte’ – a emergir, com a romancista a voltar à livraria da amiga onde tinha estado no início do filme, amiga que também é amiga da atriz, amiga que recebe um poeta para uma sessão na livraria, para a qual não há público, poeta esse que é amigo de longa data da romancista. Sem convidados para a palestra, sobra a entourage da livraria para se juntar à mesa e beber makgeolli (o leitoso vinho de arroz coreano) – filme de Sang-soo tem de ter sempre mesa e copofonia, de makgeolli , soju, tinto ou branco, porque beber ajuda a discorrer conversas.
Da pequena livraria para a pequena sala de cinema, por meio de uma elipse, a primeira projeção do filme da romancista, do qual vemos uns fragmentos, consubstancia a ideia de que do simples se faz o belo, basta observar ao redor.