Histórias a pastel / Paula Rego

Um dia, falaremos a pastel. Vamos esquecer as canetas, os marcadores ou as qualidades líricas do pincel. Falaremos de uma artista que conta histórias, porque é só o que ela sabe fazer… nada mais.

Conta livros com histórias de outros e conta as suas memórias. Memórias de família, memórias de infância que ficam tão sós, de tão cheias de um mundo só dela. Porque é na família que temos, inevitavelmente e sempre, o bom e o mau, porque é ela que tudo nos dá. Que incessante fonte de cenas e factos, de histórias para retratar, inesgotável marca da nossa existência, dos medos e dos amores e do piscar de olhos da fantasia. É ela, a dama de pastel, que nos diz que tudo começa sempre por uma história, um acontecimento ou um título… E tudo sem improviso, porque não há espaço para improvisos.

Paula Rego endireita a Ninfa D’Água na reserva da Casa das Histórias © Carlos Pombo.

É ela que nos dá a certeza de que são histórias contadas, narrativas vividas ou quiçá utopias imaginadas, por outrem. É a artista que nos ilustra peças como a de um tal Pillowman e nos garante que o Amor tem de ter olhar distante, vazio e cor vermelha, um amor enigmático. É ela que no faz pensar num Miller ou num Poe, no pecado de um Padre, em contos inquietos e na sua infância da Ericeira. É um universo de memórias, um mundo psíquico tão complexo, que a torna tão rica, exuberante e tão tentadoramente viciante, na arte. Falaremos, também, de cor. A cor que é forte como o traço marcado, duro, agressivo e quase mortal, mas sincero, genuíno e expressivamente dela. A cor que é mais desenho, que é encantamento e pecado, que é tentação.

Paula Rego “Amor”, 1995, Pastel sobre papel montado em alumínio. Colecção Paula Rego em depósito na Fundação Paula Rego/Casa das Histórias.

A cor dos tecidos das suas memórias: um manto vermelho de um amor que nunca se sentiu, de um amor que já foi, de um amor que se quis; uma almofada torcida com manto dourado de um Rei medieval; um anjo com um manto ocre em forma de saia, de espada em riste, e os vestidos do verde Horto. Não esqueceremos os infindáveis detalhes no conto trágico de almofada e as linhas e entrelinhas que cosem a história. Teremos de encontrar o Principezinho transformado, de ver o farol da infância que ilumina o espaço, de não comer as maçãs-homem que nos podem matar e…

Paula Rego “Agonia no Horto”, 2002, Pastel sobre papel montado em alumínio, 76 x 70 cm © Colecção Fundação, Paula Rego – Casa das Histórias.

E a fé numa escada crucificada porque, no fim, poderá ser apenas a peça de uma menina que queria ser como Cristo. Se crucificaremos o Sr. Pillowman? Não sabemos. Essa figura singular e sombria. O traço dela, da contadora de histórias, cai nesta tentação do escuro, misterioso e, por vezes, incómodo. No entanto, tem momentos dóceis, femininos… tão retratadas as mulheres… Momentos pueris porque vive de contos de fadas, negros de cor. Momentos de fé, ou de não fé pois, no fim de tudo, há sempre um Anjo que ataca, mas que perdoa; há um choro sentido; há preces pe(r)didas e há Amor e há cor, o trabalho exímio da agonia, num Horto com cor. A cor nas histórias! É disto que falaremos, quando falarmos dela. Falaremos, um dia, das nossas memórias a ver a cor nas histórias de Paula Rego, contadas no encalço da ficção e não só. Hoje, apenas queremos entrar na Casa das suas Histórias e sentir quatro memórias, traçadas a pastel…

Fundação, Paula Rego – Casa das Histórias © Luís Ferreira Alves

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© Imagem de destaque: Paula Rego “The Pillowman” (três quadros), 2004, Pastel sobre papel montado em alumínio. Colecção Paula Rego em depósito na Fundação Paula Rego/Casa das Histórias.