“Nos dias claros, em que o amor nos visita, tudo parece simples e ligeiro…”. Estava escuro, chovia, fazia até frio. Era um final maio fora de tempo, ou desacertado do tempo. Sentados no Majestic, quem nos visita é Adolfo Luxúria Canibal. Tudo nos parecia complexo e denso. Oito filmes, oito livros, oito poemas, oito músicas. Na mesa, “Estilhaços Cinemáticos” estilhaçados em questões várias e tudo começa na busca do simples e ligeiro, na indagação de Adolfo Morais Macedo vs Adolfo Luxúria Canibal.
A dúvida persiste: um nome e um heterónimo, heterónimos de um outro ser, ou apenas homónimos disfarçados bastando-nos escrever um?
Adolfo Morais Macedo é o meu nome de batismo, que vem desde sempre, desde que há Morais e Macedos, ou vá, desde que os Morais e os Macedos se juntaram (risos). O outro é um nome que criei na adolescência, na altura do punk. Foi um ato, de alguma forma, semi-gratuito e o certo é que gostei desse nome e ele me serviu para desviar a atenção do facto de me chamar Adolfo, nome que suscitava sempre comentários indesejáveis, dado o personagem histórico que não era pessoa muito simpática. Canibal é de tal maneira forte que o Adolfo passou a ser trocado por Afonso, Abílio, Alberto… Apesar dos circunstancialismos em que foi criado, achei que era um bom nome para ficar, o tempo foi avançando e ficou ligado a atividades artísticas, mais diretamente à música. Acabou por o nome tomar conta do personagem.
“Afinal, o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício e cair verticalmente no vício.” (M. Cesariny). Detentor de luxuriante curriculum, é vício esta gula pela multidisciplinaridade?
Não acho que seja um vicio. É salutar, mais do que um vício. A sociedade moderna, desde há muito, tem tendência a criar especialistas, pessoas que ficam muito boas e muito fechadas numa ínfima actividade. Nunca gostei muito disso. Gosto mais de não saber profundamente de algo, ter uma ideia de conjunto de várias atividades e conseguir, minimamente, desenvencilhar-me nessas atividades, mudando de uma para outra, trazendo novas ideias, ideias de outras áreas para a atividade que estou no momento a fazer. É muito importante e mais saudável.
Voando “Nas Asas do Veneno”, se estivesse à mesa “Entre Deus e o Diabo”, qual desafiaria para um jogo de xadrez e porquê?
(Risos). O jogo de xadrez teria, certamente, mais piada com o Diabo, que é mais radical, no mínimo. Mas não sei. São duas personagens protótipos, são a encarnação do bem absoluto e do mal absoluto portanto, não têm nuances, não têm densidade. São personagens muito pouco interessantes. Gosto de personagens onde possa encontrar o bem e o mal em simultâneo, que haja e tenham contradições intrínsecas. A história de estar entre Deus e o Diabo seria um bocado aborrecida, porque só tinha hipótese de escolher um ou o outro, ou de não escolher nenhum, que seria, talvez, a melhor hipótese.
Voz sonante, estamos nós “Na Crista da Demência”, a levar o barco da cultura por rios que nem “Fitzcarraldo” arriscaria?
Estamos num desinvestimento total a todos os níveis, incluindo a cultura. Houve um trabalho reiterado nos últimos 15/20 anos, por exemplo, na recuperação de anfiteatros, na construção de teatros de raiz, nas grandes cidades e nalgumas cidade médias. Houve um trabalho profundo, demorado, de investimento de dinheiro. As coisas não eram perfeitas, funcionavam mal, os espaços existiam, os conteúdos, às vezes, nem por isso, mas coisas avançaram. E, de repente, de há um ano para cá, estamos a encerrar esses espaços, alguns acabados de estrear e fecham porque entramos com equações perfeitamente economicistas, na gestão de espaços de cultura que, à partida, não funciona nesse esquema matemático ou economicista puro. Portanto, acho que estamos, nitidamente, numa crista de demência total.
Senhor do Direito do Ambiente, deveríamos criar um Dec-Lei para controlar um certo “Ângulo Morto” sonoro, que pode causar “Vertigo”, relembrando ”A Mulher do Anterior Inquilino”, quando havia alma na produção musical?
É verdade que hoje em dia é muito mais simples e barato fazer discos. Há 20/30 anos, era preciso uma grande consistência e alguém que apostasse no disco, custava muito dinheiro ir para estúdio, nada se fazia em casa e havia todo um processo industrial que obrigava a um grande investimento. Hoje, com meia dúzia de tostões, pode fazer-se tudo em casa, há uma efetiva democratização do ato de fazer. Contudo, o que essa democratização e massificação trazem de desinteressante é como a internet. Poderia pensar-se que o facto de toda a gente ter direito a exprimir a sua opinião, e fazer-se ouvir por todos, pudesse elevar o nível de discussão, mas é o contrário, o nível de discussão não sai de uma rama próxima do zero ou abaixo do zero. O que é terrível, porque parece que o facto de falarem, fazerem ou produzirem muito, música, as puxa para baixo. Porém, quem tem bom discurso continuam a tê-lo, quem faz bons discos e boa música continua a fazê-lo, perdeu só um pouco de visibilidade, no meio de todo o lixo que circula, e se calhar a importância porque as pessoas deleitam-se com a mixórdia que se vai produzindo.
Um livro feito de um filme. Um poema feito de um livro. Uma música feita de um poema. Dará para nos distanciarmos de um “C’Era una Volta Il West”, percorrendo apenas a harmónica de um livro ilustrado, ou os filmes acabam por estar no pano de fundo?
Peguei nos livros e a partir deles inspirei-me, mas não os segui em termos narrativos. Tentei ficar mais próximo das sensações que me foram despertadas na leitura, criando novas narrativas. Depois, há o que está na base desses livros, os filmes. Há uns que não vi, há uns que vi e me lembro mais ou menos ou quase nada, uns que vi e me lembro bem da narrativa, uns que me lembro de sensações que tive, quando vi. Tentei abstrair-me dos que conhecia, nem sempre consegui. Havia filmes que eram de tal maneira evidentes e próximos que contaminavam a escrita ou a própria lembrança das ilustrações. No “Era uma vez no Oeste”, olhava para as ilustrações e não conseguia descolar do filme, a escrita tem muito a ver com a sensação marcante do inicio do filme. Tudo varia de texto para texto. Com as musicas, a mesma coisa. Lembro-me de uma música que o Jorge, ao ver texto e ilustração, disse “esse não quero porque sei que, se pegar nele, vou ser influenciado pela banda sonora que adoro. Não vou conseguir ter liberdade para trabalhar, vai interferir comigo.” Não foi para ele precisamente por causa disso. Nós tínhamos noção que os filmes, apesar de serem uma realidade que já está para lá daquele horizonte a que nos propúnhamos a trabalhar, às vezes, interferiam e vinham imiscuir-se no processo criativo.
“Delícias Armadilhadas”. As oito composições de “Estilhaços Cinemáticos” que nos prendem a uma imaginária sala de música. Qual é a delícia que nos prende e liberta?
Tentámos trabalhar tudo à volta de uma coisa muito simples que é a palavra. A palavra, nas suas diversas formas, gostamos de a saborear e de a dar a saborear. Trabalhámos não só na forma de escrevê-la, mas sobretudo na forma de dizer. Os silêncios, a forma como a cuspimos ou soletramos, como a pousamos sonoramente. Depois a música vem enquadrar isto, vem dar espaço a esse trabalho, acentuar sensações, sons da própria palavra. Como n’“A Mulher do Anterior Inquilino” e a sensação de corrida e de ansiedade, serve também para criar silêncios. Sem música não se criava o silêncio, estava lá, mas nem se reparava. Há todo este trabalhar, que não é por acaso e que é difícil de fazer, pois há uma grande sustentação. Qualquer músico ou música, a tendência é para tocar muito, mostrar que sabe tocar, que sabe muita técnica e aqui o trabalho é exatamente o contrário, é uma retenção enorme do saber, não se mostrar rigorosamente nada e não ter problemas de ego, não ter nada a provar. Só se vai utilizar uma nota, porque o texto só precisa de uma nota, e saber que ali só é preciso uma nota, em vez de dez, é preciso saber muito, ter uma grande disciplina e sensibilidade, e só músicos de exceção conseguem fazer.
“Vai e Vem”, entre tantos projectos que “Eu Não Reino” pois “A Minha Missão é Outra” qual é a missão deste projecto de que forma poderá representar valores, moral e ideal, de um superego?
Não sei se pode, ou não. Gosto de pensar, não especificamente neste projecto, mas nas coisas que genericamente faço, a nível artístico, que há um trabalho, sobretudo e em primeiro lugar, para comigo próprio. O ato de escrever obriga-me a pensar e mesmo quando escrevo narrativas ficcionais, o sentido dessas narrativas obriga-me a pensar sobre o que se coloca na narrativa. Depois gosto de pensar, numa segunda análise, que estes trabalhos podem fazer pensar terceiros e, nesse sentido, ao fazer pensar, as pessoas poderão de alguma forma interferir ou intervir na praxis social, mas é uma coisa, sobretudo ao nível deste trabalho dos Estilhaços, em que se trabalha de uma forma muito seletiva e intima a palavra, é muito restrito, logo nunca terá muitas repercussões a nível de massificação de grandes alterações profundas na praxis social, mas poderá, efetivamente, tocar de alguma forma sensibilidades individuais.
“Iluminações da Matéria” há a ideia peregrina (ou não) de reincarnar um “Dead Man”?
Aqui, mais do que a ideia da reincarnação, fui buscar uma outra ideia que tem a ver com o ADN. Há uma base comum a tudo que depois só a forma é que varia de toda a existência, sejam pedras, plantas, seres vivos,… que é uma teoria muito desenvolvida pelos índios amazónicos e há experiências antropológicas relativamente a isso, nomeadamente, com o consumo e ritual de ayahuasca – uma espécie de mistura alucinogénica índia e que permite esse contato de quase cruzar ADN’s de diversos seres animais, ou não, que compõem o planeta e foi mais neste sentido, nesta integração, que foi desenvolvido este texto, baseado também neste filme, embora o filme não chegue lá.
Por fim, para terminar este estilhaço de conversa, Estilhaços é música falada ou poesia musicada?
É mais poesia musicada. Se bem que não gosto muito do termo poesia aplicada aos meus textos, é mais a palavra musicada.
E se a memória do puzzle filme-livro-estilhaço lhe falha… é só clicar em Estilhaços (hiperligação abaixo) e refrescar as ideias – recorreu-se ao projeto “Estilhaços Cinemáticos” para construir quase todas as questões desta conversa. •
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© Fotografia: Carlos Gomes .