E eis que Afonso Cruz deposita nas nossas mãos, Flores, o seu último romance. Editado pela Companhia das Letras, o sucessor de Para Onde Vão os Guarda-Chuvas (2013) abandona o Oriente, serve-se da narração em primeira pessoa e põe as ilustrações de lado. Reinventar é palavra que não cai na rotina.
«Como não conseguia resolver a minha vida, decidi continuar a recuperar a do senhor Ulme» (p.150). É desta forma que as vidas de dois vizinhos – o mesmo será dizer, de dois perfeitos desconhecidos – se vêm a entrelaçar. Atingido pela perda recente do pai, mergulhado num quotidiano amorfo, fazendo tempestades em copos de água, o narrador vai contemplando a degradação do seu casamento como a uma «paisagem triste» (p.22). Para o senhor Ulme, que perdeu as memórias afetivas, o passado fez-se deserto; a evolução da sua doença ameaça-lhe ainda a mobilidade e a fala. Mas a capacidade de se indignar com as tragédias do mundo permanece intacta.
O resgate do passado de Manuel Ulme – só possível através da memória dos que o conheceram – assume, para o narrador, jornalista de profissão, foros de uma missão redentora, ao mesmo tempo que adensa o jogo de espelhos sobre o qual o romance se acha construído. Os testemunhos recolhidos, espelhando visões diferentes e, não raro, contraditórias, dizem da impossibilidade de se alcançar uma imagem coerente e definitiva. Os contornos da vida de Manuel Ulme ora se mostram nítidos, ora esbatidos ora, ainda, distorcidos. Seguindo uma verdade que permanentemente se enviesa, o narrador, apesar das muitas falhas que lhe podem ser apontadas, tem na condução desta investigação o grande mérito de persistir, deixando-se guiar por uma máxima formulada diante do espelho: «Não posso aceitar qualquer reflexo que me seja devolvido. Resistirei» (p. 26). Cada descoberta sobre a vida do vizinho vai, num foco cruzado, iluminar um certo ângulo da sua própria vida. E se reconstrói o passado a Ulme, é este quem lhe vai restaurando o presente.
Imagem poética por excelência – lembremos somente Baudelaire e as suas Fleurs du Mal –, das Flores que se inscrevem no título se desprende uma densa carga simbólica. Lá estão a mulher, a beleza e o amor, concentrados nas três irmãs Flores (Dália, Violeta e Margarida, esta última, a grande paixão de Ulme); a morte que se dá a conhecer, nas flores que murcham («o fim das coisas cheira a flores», p.16). E tantos outros sentidos, que brotam de uma produtiva imaginação: uma valiosa “enciclopédia” de vida abre-se através do senhor Ulme, que «sabia tudo de flores» (p.129); uma simples «flor no cabelo», enxertada na narrativa, consegue explicar a prosperidade de todo um lugar («A aldeia começou a ficar como a Margarida, com uma coroa de funcho na cabeça», p. 130).
Desta forma, na arte do romance de Afonso Cruz, as flores servem, antes de tudo, de caução a uma sensibilidade poética capaz de fazer abrir sentidos no texto e de criar momentos de rara beleza. A mesma imagem serve ainda ao autor para exprimir, em entrevista, a intrincada orgânica da sua obra: «quase todos os meus livros têm filamentos, raízes, sementes e esporos que vêm de outros e partem para novos lugares» (Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1174). Muitos elementos são, assim, revisitados: a ideia da perda da memória, aflorada em A Boneca de Kokoschka; o inevitável Isaac Dresner, que se passeia por quase todos os títulos; de Jesus Cristo Bebia Cerveja, o Padre Tevez e o próprio Alentejo, a insinuar-se como geografia de (e)terno retorno.
Pela mesma raiz, a música – uma das outras faces criativas de Afonso Cruz – entra ainda neste romance com uma força incrível. Se o floreado é também uma variação que um músico executa sobre um trecho que interpreta, o autor fá-lo neste livro – e em tantos outros, afinal – com reconhecida mestria. Insistentemente repetidos por Ulme, «Entremos mais dentro na espessura» e «Altitude», apelando a um grau de comprometimento que possa ir além da superfície das coisas, funcionam simultaneamente como refrões, ecoando ao longo das páginas.
Nem tudo serão rosas. O romance torna bem visíveis os males que corroem o indivíduo e o mundo, mas deixa de algum modo florir a esperança quando o sentido para a vida ameaça desvanecer-se.
272 páginas / € 17,50
+ Companhia das Letras
© Fotografia: Isac Pinto
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