“Obrigatório não ver”: Ana Hatherly no CAPC

Ao passar pela rua Castro Matoso, entre por favor na sede do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra e “veja” a exposição de Ana Hatherly, apesar de ser Obrigatório não ver!

Tem, até dia ao 30 de Abril, a oportunidade de ver uma exposição que consideramos imperdível; tanto pelas obras de Ana Hatherly, como pela claridade da sua organização, cuja concepção coube a Jorge Pais de Sousa. Constam os trabalhos de uma vida, a de Ana, e, no fim, parece ficar um lastro de verdadeira ternura.
Ana Hatherly diz-nos, em O Mestre, que “Tudo está sempre a destruir tudo. Ou qualquer coisa. Ou alguém. Mas estamos sempre a destruir tudo ou qualquer coisa. Ou alguém.” Novela exemplar, O Mestre tece as malhas de uma relação complexa entre Discípula e Mestre, é verdade, com a primeira a trespassar o coração do segundo, embora este lhe conquiste a preciosa cabeça; quanto à destruição, ainda nos adverte: “Os construtores demolem. No lugar onde estava o sopro, pomos pedras ou palavras: sinónimo de construção. Ou destruição. Ou acção.” Pois bem, em lugar do sopro, infinito, as pedras e as palavras, sinónimo da finitude. E será com elas que Ana Hatherly constrói, destrói ou age, segundo as suas próprias coordenadas, sobre a realidade.

No que se refere ao título desta exposição, foi captado de uma série de programas de televisão mantidos pela artista, transmitidos pelo Canal 2 da RTP durante os anos de 1978 e 1979. Depois, daria origem a um pequeno livro que reúne textos escritos entre os anos 60 e 80, referentes tanto a esse programa televisivo, como a outros da rádio e da imprensa cultural. Obrigatório não ver, na verdade, alude às resistências que permanecem quanto à arte contemporânea que, pese embora seja aquela que coincide supostamente com o nosso tempo, parece exigir intrincados caminhos do olhar.

Assim, esta exposição panorâmica literária e visual, que se inscreve aliás num programa iniciado na Casa da Escrita de Coimbra, relativo à Poesia Experimental, recobre uma obra sensível e calibrada pela “mão inteligente”, conceito decalcado de Mapas da Imaginação e da Memória, primeiro livro de artista de Ana Hatherly. Nela, acedemos a diferentes soluções criativas, como sejam o vídeo, o desenho ou a collage. Nesta última inscrevem-se seis de nove peças que se expuseram no CAPC no ano de 1977, numa mostra que se intitulou Descolagens na Cidade, dando hoje pelo nome de Ruas de Lisboa; icónicas, reportam-se aos anos sequentes ao 25 de Abril de 1974, e fazem coexistir fragmentos de cartazes políticos com outros alusivos ao circo. Apresentam-se numa escala que difere daquela que consideramos ser a que particulariza Ana Hatherly – o ínfimo; e fazem par com o filme Revolução, de 1975, também presente na exposição actual, e que insiste em igual temática política e social.
Obrigatório não ver abre com uma máquina de escrever e fecha com um avental: a primeira de onde retirou, serena, as composições melodiosas da sua escrita poética; o segundo que usou quando começou a utilizar o spray, e que assinou em 2005. Sobre o seu universo criativo, e crítico, será esta também esta a oportunidade de fruir de um documentário devido a Luís Alves de Matos.

Regressando à escala ínfima; com efeito, e apesar de Ana Hatherly derivar as suas manifestações, é naquela escala que nos parece tanger mais sentida e exemplarmente a “mão inteligente”. Afigura-se-nos realmente tocante a minúcia das suas folhagens, dos seus pássaros, das suas árvores e das suas palavras que são isto tudo, e mais. Da escrita ao desenho e à pintura, geralmente a preto no branco, mas nalguns casos trazendo à colação a cor, em ciclos de repetição que densificam, Ana Hatherly acerta-nos em cheio num ponto corporal de difícil nomeação. Recorrendo novamente a O Mestre, quando diz que “A cabeça da Discípula está trespassada por um punhal enterrado na fronte até ao punho”, sendo assim mesmo que acaba a novela; perguntamo-nos – em que parte do meu corpo permanece enterrado o fino punhal?

Para ver no CAPC, em Coimbra, na Rua Castro Matoso, entre as 14h00 e as 18h00, de terça a sábado.

+ CAPC
© Fotografia: Jorge Neves.

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