O Museu Nacional de Machado de Castro “do Avesso” / Rui Macedo

Foi no dia 18 de Maio que inaugurou, no Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra, a exposição intitulada Avesso da Norma, da autoria de Rui Macedo. Residirá no museu até 18 de Setembro de 2016, mas não resistimos a falar dela desde já.

De forma prática, podemos automaticamente contabilizar a exposição: 16 instalações pictóricas, correspondentes a 101 pinturas a óleo sobre tela; estas ocupam as diversas salas do Museu, num diálogo directo com a colecção exposta. Tendo-se realizado especificamente para cada sítio onde permanecerão até Setembro, prenunciam portanto uma exploração site-specific, e resultam de “processos meta-pictóricos e ficcionais que acentuam relações simbólicas, formais e conceptuais entre a arte contemporânea e a magnífica colecção do Museu Nacional de Machado de Castro.” Lê-se no documento que divulga, junto ao público, este acontecimento expositivo.

Do ponto de vista da contemplação, os caminhos intrincados do/s olhar/es que Rui Macedo propõe despertam ecos antigos, e conduzem-nos a perplexidades assinaláveis. Assim, e sem começar pelo início do percurso, que corresponde a uma “ideia” de porta em que se deixa o aviso iconoclasta e se assume o trompe l’oeil enquanto ilusão da realidade (quanto a este, se houvera dominado a história da pintura, afirma-se central em toda a obra do artista); passo a deter-me em três momentos que me parecem decisivos.

Primeiro: a instalação que dialoga com o conjunto escultórico Deposição no Túmulo, saído da precisa e encantada “mão” de João de Ruão, no século XVI. Tapa-se o corpo de Cristo através de uma placa pictórica colocada a altura elevada, que resta frontal e lateralmente, acentuando-se os fios de olhar de S. João e das Santas Mulheres retratadas. Metáfora da morte da pintura, para que permaneça o olhar. Já Isabel Sabino, num texto bastante elucidativo que nomeou “A pintura que faz falta”, nos diz: “Fazer pintura sem pintura implica um conceito desta que não a define mas a assume numa visão integradora pictórica, porque existe em potência no próprio olhar.” Pois bem: é esta potência do olhar que aqui, como desde longo tempo a esta parte, está em primeiro plano. A escultura é velada pela pintura, o que exacerba os olhares de tristeza das figuras.

Segundo: a espécie de Pinacoteca de Babel que se ensaia na sala da pintura barroca, com uma instalação que prolonga, para cima e para baixo, os quadros de época. Trata-se, portanto, de uma sucessão de pinturas que representam molduras, em vácuo, naquela que pode ainda considerar-se uma revisitação dos Gabinetes de Curiosidades da época Moderna. Parece restar a questão: onde começa e termina a pintura? Rui Macedo pinta destroços e a impossibilidade de crença. É sintomático que, durante o percurso ensaiado no Museu, nos vejamos do avesso, realmente; a nudez da pintura, os seus artifícios, os fios de prumo da perspectiva… Para onde foram as figuras?

Terceiro: “Isto não é o Tesouro da Rainha Santa Isabel”, numa conivência com René Magritte. Na verdade, esta última proposta resultou de um desafio colocado pelo Museu Nacional de Machado de Castro; tendo o Tesouro da Rainha Santa Isabel sido retirado para empréstimo, pediu-se ao pintor que reflectisse a partir dessa ausência. O que aconteceu? Cremos que pinturas-sudário a aludir à Cruz, à Virgem e o Menino, ao Relicário e ao Colar; ou seja, não é o tesouro que ali estará, mas, fantasmaticamente, a ausência. No entanto, essa ausência é tratada de tal forma encantatória que esconjura, a meu ver, a medusa da pintura.

E já Maurice Merleau-Ponty dizia, em O Olho e o Espírito, que as uvas que Caravaggio pinta não são as uvas, mas quem pode garantir, para além dessa evidência, que não sejam as uvas mesmo? Toda a história da pintura é a de um sonho, ou de vários. Parece-me relativamente pacífico reconhecer que a nossa época acordou. Mas se a História consegue conceber puerilidades para o passado, que dirão, num futuro longínquo, aquelas gerações a vir? Porque, contrariamente ao que algumas pessoas quiseram fazer crer, a história não acabou.

Para ver no Museu Nacional de Machado de Castro (leia aqui artigo sobre o Museu), em Coimbra e no Largo Dr. José Rodrigues. Até 18 de Setembro!

© Fotografia: Ema m & Rui Macedo

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