Segundo retrato resultante de Paço com Arte #1: Victor Costa na abstracção exímia, para quem um título comporta uma musicalidade específica e dá o timbre derradeiro à matéria da arte que é natureza, mais do que naturada, naturante.
Victor Costa é autodidacta, tendo seguido a arte com sofreguidão contida enquanto trabalhava na indústria farmacêutica. Quando o indaguei sobre a possível contaminação da pintura por percurso aparentemente tão diverso, reconhece que dele avultaram valores sólidos: ética, rigor, comunicação intrínseca; tais valores seriam enxertados numa prática artística que persegue a veracidade expressiva. Esta conduz-nos automática e actualmente para os caminhos da abstracção, pese embora, nos inícios que remontam a 1980, data das suas primeiras exposições, tenha tido um encanto pela figuração com laivo realista, pintando rostos, a cidade de Coimbra, bem como aspectos da ruralidade. Diga-se que tais inícios terão sido uma espécie de prova de fogo, um estágio e estudo visuais em que maturou a destreza técnica, ao mesmo tempo laborando na sua singularidade artística.
No momento da Tertúlia sobre Arte, que ocorreu dia 15 de Outubro, data da abertura da Residência Artística que decorreu, portanto, no Conimbriga Hotel do Paço, em Condeixa-a-Nova, Victor Costa referiu que, tendo começado pelo caminho de um realismo evidente, avançou posteriormente no sentido da desconstrução da realidade e consequente abstracção imagética, destacando os títulos na sua obra como ocasiões para se comunicar abstractamente. Ora, tendo em conta uma particularidade bem observável na actualidade, e que Maria Teresa Cruz, por exemplo, sublinha, ou seja, a de apresentar as obras de arte sem título, a postura de Victor interpelou-me e foi precisamente por aí que iniciámos a nossa conversa. O pintor não hesitou: o título dá uma musicalidade à obra, uma tonalidade que confere sentido à comunicação entre artista e observador/a, e vice-versa, afigurando-se imprescindível, para si, o estabelecimento de um diálogo. Assim, apresenta três níveis de relação com a obra: 1º uma observação da ordem das sensações; 2º a apreensão ou leitura do título; 3º um diálogo entre quem fez e quem observa. Para Victor Costa, portanto, o “s/título” tem subjacente uma solidão da ordem da intransponibilidade, abrindo demasiado, e por outro lado, a obra para quem a vê: por um lado, um artista mudo, pelo outro, uma indefinição que as cores, os sentimentos por elas veiculados, bem como as sensações vertidas nos planos através de luz e sombras, não atenuariam. O título aparece, então, aqui, como um apelo e um apontador, pelo que se estabelece uma afinidade profunda entre ele e a obra.
O diálogo pressuposto na arte em que Victor Costa insiste, e que considera mesmo encarnar o seu espírito, não implica a presença e é mutável, essencialmente no tempo: “Eu pinto para comunicar com quem me lê. O título aponta a minha proposta em função do trabalho que estou a apresentar”, afirmou. Neste entorno, a obra apresenta-se essencialmente enquanto um meio, em que pintar diminui, como reconhece, a solidão e possibilita, no mesmo gesto, o ser-se tocado, na reversibilidade. Expõe desde 1980; até 2000 manteve o percurso bífido, para a partir dessa data se embrenhar unicamente na pintura, bem como em actividades com ela relacionadas, como sejam a musicoterapia e arte, encontros de carácter pedagógico e científico e manifestações artísticas públicas; o seu atelier mantém-se em Almalaguês. E como comunica Victor? Através da síntese: “a síntese é o meu caminho para comunicar”, insiste. Pela atitude sintética visa tocar o/as demais, quem observa. A onde o leva a síntese, ou o que comporta? Diria que se trata de uma estilização interior, onde o pintor destaca a emoção: apuramento da singularidade, ou afinação de algo pessoal e íntimo.
Victor Costa permanece consciente relativamente a uma espécie de perigo intrínseco à abstracção, que faz residir na possibilidade de, precisamente, “fazer abstrair-nos”, como vinca: diluir a realidade ao ponto de provocar uma fascinação, digamos, anestesiante. E estamos aqui, talvez e nesta questão, a agir precisamente na tensão mais poderosa proveniente da arte: dizer a realidade ou abrir paisagens no mundo? Neste entorno, convido-vos a descobrirem uma série de Victor Costa que remonta a 2017: “Fugas, Refugas, Refugiados, Refúgio”. Num exercício de lucidez admirável, o pintor aborda a questão dos refugiados, que traduz entre a figuração e a abstracção, precisamente alertando-nos para quanto à guerra, e sua condição trágica, a arte se confrontar com uma angústia de expressão.
“Fugas, Refugas, Refugiados, Refúgio”: uma série irrepreensível, a provar que Victor Costa permanece acordado, e nós com ele.