O pintor italiano que viajou uma única vez, a Malta, e fugindo à polícia, pintou também “São Sebastião” enquanto submergia uma, e outra vez, nos escombros da sua vida tão clara e escura quanto os seus quadros.
Entre 1571 e 1610, lapso de tempo em que Caravaggio terá vivido, pintou compulsivamente em claro e escuro, certamente fruto também da época, mas cunhando as suas obras com uma ambiência inconfundível, inultrapassável e inimitável, que convocou, todavia, seguidores, tanto próximos como distantes. Não esqueçamos que entre 1545 e 1563 se desenrolou o Concílio de Trento, com um último momento dedicado à pedagogia das imagens na arte, estas em disputa com a sensualidade proveniente de uma Renascença luxuriante e nua, e dialecticamente, em tempo real, dando resposta à cisão provocada pelo Protestantismo, que teve em Lutero, mas também em Calvino, os epicentros figurais.
As imagens queriam-se dramáticas, severas, escuras, se contidas na nudez, extremamente pietistas no efeito, se gélidas no aparato da natureza, explodentes sem dúvida na forma como se entranhavam nos olhos e no corpo: aqui Caravaggio é de facto inconfundível, inultrapassável e inimitável. E é-o à sua medida. Não que não existam pintores e pintoras igualmente gigantes: claro que existem, existem mesmo e sobre eles e elas tenho escrito; Caravaggio é gigante à sua medida, portanto: à medida da forma com que imprimiu na pintura um negativo da vida. Imagino que pintar, para Caravaggio, era viver, de facto, ou respirar, ou arfar, ou fazer amor. Muito se tem dito acerca da vida tumultuosa deste artista, que, entretanto, é símbolo actual, acentuando-se a condição de homossexualidade, a mesma que tem vindo a ser questionada, para melhor se inscrever numa intensa sensualidade reservada ao real, desde as gentes que frequentava, desde a família perdida em tenra idade, desde a volúpia com que certamente percorria as ruas das cidades, com golpes de mão, com raios faiscantes nos olhos, com a boca a salivar de desejo, de pintar.
Imagino Caravaggio com uma grande dificuldade em falar, em relacionar-se “normalmente” fosse com quem fosse, com a lei, com o poder, mas, perante os quadros, pintando, sem dúvida transfigurando-se, sendo total, de cima a baixo, de trás para a frente, dançando furioso, com escarpas internas sempre a verter-se, atravessando desfiladeiros profundos sobre uma fina cana e praticando a lavagem da realidade através de lençóis de água jorrando dos seus olhos. Até parece que o estou a ver aqui mesmo, ao pé de mim, e contagiando-me, sim, cercando-me o espírito, atingindo-me, na cabeça, no coração e no sexo, sim, porque Caravaggio fá-lo: na cabeça, no coração e no sexo.
Existem artistas, pintores, pessoas: assim. Caravaggio tem sido motor para muitas interrogações na nossa contemporaneidade, actual, seja ou não uma contradição falar de contemporaneidade-actual, já que serão oposições, nomeadamente, então sobre o pintor italiano, acerca da vida e da arte. Destaca-se a sua perigosidade, o seu carácter fora-da-lei, o seu secretismo obscuro, a sua violência, a sua virulência, que se colocam perante a pintura sobrenatural legada. Julgo, muito seriamente, que qualquer tentativa de imitação consciente apenas poderá cair no logro, e valho-me do que Julia Kristeva advoga, ou seja: quando se monta uma encenação à Marquês de Sade em que todos os jogadores sabem exactamente o papel que desempenham, isso não assusta. O que assusta, então? O que assusta, realmente, é quando existe uma vítima, ou seja: quando alguém está no epicentro e não faz a mínima ideia do jogo que outro/as estão a jogar. Aqui remato: se a vítima, entretanto, não reproduzir o mal então, sim, aconteceu algo de sumamente grandioso.
Caravaggio pintou, e pagou com a vida.