Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Vasco Espinheira

Falar de Vasco Espinheira, na música, é falar inevitavelmente de uns aclamados veteranos veteraníssimos Blind Zero, banda com quase trinta anos de história de música e palcos. Banda que é, no seu estilo, uma referência na cena musical portuguesa.

Com a cidade Invicta na certidão de nascimento, Vasco Espinheira – junto com aqueles amigos que se tornaram família – forma, em 1994, os Blind Zero; naquela memorável década onde o rock e o grunge reinavam (quase) sem concorrência. Rapidamente e naturalmente, tornaram-se numa das referências do rock nacional; primeiro pela novidade do som – feito cá, por músicos de cá – com que brindavam o público português, depois pela consistente evolução da sua sonoridade, sempre sem perderem a sua identidade musical.
Na algibeira, discos que não conseguimos contar com uma só mão; discos que foram sempre marcando a música nacional e a que, em 2015, para celebrar duas décadas de Blind Zero, se juntou uma edição especial onde Vasco Espinheira e seus pares revisitaram “Kill Drama” ao lado de 11 convidados de luxo (como Francisco Silva – Old Jerusalem; João Rui – a Jigsaw; Marta Ren, Jorge Palma, Sandra Nasić – Guano Apes, entre outros) que com o seu talento deram nova vida aos temas do disco, reafirmando assim o natural lugar cimeiro deste disco; que venham mais discos, é o que se espera. É com Vasco Espinheira, de alma Blind Zero, que hoje reflectimos sobre os últimos tempos desta tão estranha época pandémica.

Se te pedisse para escolheres uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(VE):
Seguramente seria um “Lá” a 440hz por ser a nota ponto de partida para a exploração sonora que me acompanhou durante todos os infindáveis dias de confinamento. Combati diariamente o silêncio, as memórias do passado e as incertezas do futuro, olhando para este momento como uma oportunidade para criar e arriscar.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(VE):
Saí uns dias da cidade, antes de tudo fechar, para uma casa isolada entre o rio Minho, a montanha e a floresta, com um carro a transbordar de equipamentos musicais. Quando o corpo está confinado entre quatro paredes cabe à mente viajar. Não dei tempo à desilusão e a saudade dos palcos, praticamente abandonei as redes sociais para focar-me apenas na criação. Criei a gaveta de raiz e comecei diariamente a enche-la.

Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activo?
(VE):
Os artistas são um misto de multitaskers e criativos que vivem para encontrar soluções para a sua arte. A vontade de tocar levou à explosão do streaming. Acredito que vamos viver uma era híbrida onde o presencial e o online são diferentes faces da mesma moeda e que se completam. Afinal, o “vídeo (didn´t) kill the radio star”.
Por exemplo, os Blind Zero fizeram, durante o confinamento, uma versão do “We shall overcome” e tocaram num grande festival online internacional.

Estás a desenvolver músicas ou produções para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(VE):
Na realidade, o confinamento apenas modificou o processo. Deu mais tempo à primeira fase e consequentemente atrasou a segunda. Nos Blind Zero, a composição parte de um ato individual e solitário, cada um cria esboços de canções para, numa segunda fase, partilharmos uns com os outros e desenvolvermos a partir daí. Este confinamento resultou em muita matéria-prima pronta a ser refinada na sala de ensaios e posteriormente no estúdio.

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo?
(VE):
Organizar a agenda foi fácil, tendo em conta as circunstâncias. Foi selecionar tudo o que existia e carregar no “delete”. No entanto, ainda conseguimos fazer o primeiro concerto da tour “Transmission” no Palácio de Cristal, no Porto, e um concerto no Teatro Rivoli com a Orquestra Juvenil da Bonjóia.
O confinamento e todas as suas limitações e incertezas obrigaram-nos a congelar os planos que tínhamos. Mas desde cedo que criámos o nosso universo paralelo, onde o tempo vive em função da urgência do que queremos comunicar seja discos ou digressões. Sentimos que esta liberdade artística é o nosso elixir.

Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(VE):
O meu lado positivo diz que este será um ponto de partida para a redescoberta e para a reinvenção. Este momento tão duro chamou a atenção para as debilidades de um enorme e tão incompreendido setor.
O meu lado racional diz que o Estado se sentiu obrigado a actuar em função do ruido e aplicou os primeiros socorros, apenas aos feridos que ainda conseguiam caminhar. Os outros morreram de forma cruel nesta longa travessia no deserto. Perdeu-se uma grande parte da geração que iria agora dar os primeiros passos neste setor. Só quem ama verdadeiramente a arte é que irá começar ou manter-se. O holofote está a destacar o setor, agora cabe ao Estado reestruturar e compreender todas as particularidades da produção artística. 
O público precisa tanto de Cultura como de desconfinar. Não tenho dúvida de que vão apoiar a Cultura como a Cultura se auto-apoiou de forma exemplar com o movimento União Audiovisual.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de músico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(VE):
Estas três palavras representam na perfeição o ciclo da arte. A produção é o ponto de partida, a criatividade é a diferenciação e os palcos são a razão da criação.
Como a tecnologia democratizou o talento, nunca foi tão fácil ser criador de conteúdos. No meio de um oceano de talentos, o desafio de hoje é reinventar e usar a criatividade como forma de diferenciação para captar a atenção do público. Só isto irá dar palco para demonstrar valor e autenticidade. Nos Blind Zero o que nos move é algo tão puro quanto focado no nosso próprio umbigo. É a necessidade vital de nos surpreendermos, como se em todo o mundo apenas existissem cinco pessoas. Esta necessidade de reinvenção a cada disco traduz-se em autenticidade artística e talvez seja isto que cativa as pessoas. O futuro pertence a quem ousa desafiar.

Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto músico? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(VE):
A nossa longevidade é fruto de uma enorme amizade, igual a uma verdadeira família. Afinal, são anos de crescimento comum e de momentos inesquecíveis. As videochamadas ajudam, mas não curam.
Mesmo vivendo bem com o passado, olhando em demasia para este, é o primeiro passo para cristalizarmos. O que nos fascina é o futuro enquanto mutante.

+ Blind Zero
© Fotografia: Vasco Espinheira, DR.

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