Foi entre os meses de Maio e Julho de 2021 que “Início permanente” habitou a Galeria da Casa A. Molder, um projecto da artista Adriana Molder na baixa de Lisboa, concretamente, Rua 1º de Dezembro, 101, 3º andar, onde August Molder fundou, em 1943, uma loja de filatelia.
Vi a escultura que Rui Chafes entendeu intitular como “Início permanente” no dia 1 de Junho, mas apenas agora me foi possível escrever algo sobre ela. As razões? Prendem-se com a ressonância que tal experiência me proporcionou, ao enfatizar aquilo em que acredito, para lá das dúvidas todas: uma obra de arte é para sentir, mais que tudo, para deflagrar num ponto corporal de geometria precisa, para fazer explodir alguma coisa. Por vezes, uma obra de arte instala-se de maneira subliminar e impera, age, através do inconsciente, vindo a acordar mais tarde lógicas, de sentido, de entendimento, de ordenação mental. Não é a primeira vez que Rui Chafes recorre à táctica em “Início permanente” activa: escuro envolvente à partida, com os nossos passos a dissolver-se e a ouvirmos até as veias, como se de levitação neste caso se tratasse, para lentamente se proporcionar leve iluminação, que nesta ocasião se revestiu de uma subtileza, de uma precisão, e de complexidade, notáveis.
Em “Tranquila ferida do sim, faca do não”, instalação que remonta ao ano de 2013, o tempo de espera para que se proporcionasse um relativo entendimento do espaço, e das supostas concretas esculturas, poderia sentir-se como angustiante, mas tal era a condição, justa, para que a recompensa avultasse, transmutada de revelação. Em “Início permanente” localizei igual aviso: é preciso (ter) tempo para aceder, nomeadamente, à verdade: da obra, das coisas, das pessoas, da vida, das ideias. E na Galeria da Casa A. Molder, entre Maio e Julho de 2021, qual foi a verdade a que acedemos? Poderia, aqui, escudar-me numa posição subjectiva, digamos assim, salvaguardando o que foi a “minha” experiência, logo, é a “minha” verdade, remontando, portanto, ao dia 1 de Junho de 2021. Mas creio que não estaria a ser correcta, e passo a explicar. Sem dúvida que a ressonância de “Início permanente” foi proporcionada por uma experiência singular, impossível de introjectar noutro corpo que não aquele que envergo e verticaliza, mas precisamente na arte existe a obra, na sua intacta consistência; depois, aparecemos nós, tanto quem a criou, como quem a percepciona. (E note-se que criar também significa acompanhar.) E, todavia, uma obra de arte é também um passador, um crivo, por onde escorre o/a artista, e por onde passa quem a frui.
“Início permanente” era um tratado, que percorre o sentido aos pares e enuncio apenas alguns: escuro/luz; costas/frente; indistinção/forma; fechamento/abertura; exterior/interior; … Insiste no princípio de passagem, no de atravessamento, no de iniciação. Desdobra-se continuamente, até ao infinito, e sendo tão pequenina, tão recolhida, tão jacente também, tão dividida, revela, pela sombra, o movimento que a vida exige, que a vida é. Não uma sombra de vida, mas outra coisa. A sombra ronda “Início permanente” como uma espécie de auréola, sem, contudo, lhe proporcionar qualidades fantasmáticas, não: é a sombra que lhe atribui o princípio activo, de ordem a que dou o nome de atmosférica. Assim, “Início permanente” fixa uma espécie de esquema matricial passível de ser transposto para as coisas, para as pessoas, para a vida, para as ideias. Que esquema matricial é esse? É, parece-me, o que nos demonstra que devemos “ir” às coisas, às pessoas, à vida, às ideias, não como se fossemos à sua fixidez petrificada, pese embora as possamos isolar, mas com a consciência de um movimento constitutivo, bem como do tecido (que não é sinónimo de origem, pré-determinada) em que se inscrevem, no sentido de horizonte.
Sim: “Início permanente” dá-nos um horizonte e abraça-nos.
P.S.: Para quem pensa que a escultura é a escultura, sem se aperceber do que aconteceu/acontece em “Início permanente”, perderá algo fundamental. E para quem afirme: pois, mas a “escultura” sem a luz, sem a sombra, sem … Exactamente: como uma boca que sem uma palavra para saborear, ou uma palavra sem uma boca que a profira, restam órfãs.