Corpo e Alma

No ano de 2017, “Corpo e Alma”, um filme vindo da Hungria e devido a Ildikó Enyedi, causou alguma estranheza e dividiu sensações.

Não vou escrever sobre este filme, porque existem realidades, sentimentos, ocorrências, efetividades, que se aceitam como verdadeiras, ou não: ou seja, deixamo-nos sugestionar por elas, ou não. A nossa vida diária – real, sentida, ocorrida, efetiva, será tão ou mais, ou menos, (sur)real quanto nos deixemos suave e sem resistência penetrar pelas imagens que adoramos, pelas palavras que se infiltram no nosso discurso e que diferem dos tópicos da época.

Se alguém pura e simplesmente negar, a pés-juntos, a possibilidade de dois seres humanos partilharem um sonho e dar-se o caso, sempre maravilhoso, de virem a encontrar-se no mesmo espaço-tempo na Terra, nem invocando o Albert Einstein ou a Marie Curie poderá providenciar-se a prova necessária.

Por outro lado, por mais técnicas que sejam induzidas, daquelas que são achadas no prêt-à-porter da comunicação, nunca se conseguirá desmontar a intensa lógica do realismo mágico; lógica apenas passível de ser sabotada pelos seus intervenientes diretos. 

Houve aquele tempo em que uma imagem que contivesse um rio com abundante água corrente proporcionava uma sensação de frescor, originando, na experiência de contato, a reprodução, através de onomatopeias, desse invisível ou dessa propagação das coisas: exatamente como o uso de perfume pelas pessoas, que deixa uma permanência.

Esse tempo não é aquele em que nos encontramos; não é que não existam seres humanos capazes de experimentarem estas sensações, mas aconselha-se a que fiquem calados que nem ratos, pois a probabilidade de serem considerados doidos é bastante plausível. Destarte, com que ficamos? Com a realidade e com a arte, separadas por uma única linha. Acontece que a arte e a obra de arte são como a água que bebemos: se uma parte é expelida e regressa ao exterior, outra parte permanece dentro e incorpora-se nos nossos tecidos. E se desconfiamos hoje, como coletivo, daquele desgraçado que perante um comboio que avança sem freio na tela do cinema se levanta, alvoroçado, do seu assento e se põe a fugir para não ser atropelado, provavelmente, no escuro individual das nossas emoções, continuaremos a saber discernir que existem obras de arte que nos revolvem e resgatam, mas outras não.

Leonardo da Vinci, o génio do Renascimento que tantos constantemente relatam como o subscritor da máxima que imputa a pintura à mente, como se este pintor tivesse pura e simplesmente exercido o seu ofício sem mãos – para o que vem como uma espécie de Houdini da imagem, sabia que corpo e alma são irmão e irmã siameses. Pois o que não podemos de maneira nenhuma esquecer é o tecido histórico em que Leonardo afirmou que a pintura é “coisa mental”: e que corresponde ao momento em que se desmembrou e se submergiu no corpo humano, através da anatomia moderna, com o que se profanou a alma.

Ora, agora, os nossos problemas civilizacionais diferem dos do século XVI e alinham-se, por exemplo, com a disseminação da Inteligência Artificial ao serviço também, da arte. Maurice Merleau-Ponty escreveu, em O Olho e o Espírito, que o pintor dá o seu corpo à pintura, o que se cauciona na obra de arte; pelo que não podemos permitir que nos contrabandeiem o/s corpo/s nestas horas de confusão.

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