Volveréis, de Jonás Trueba
DA VAGA DE SALA – Especial Leffest
“O amor da repetição é na verdade o único feliz. Tal como o amor da recordação, não tem a inquietação da esperança, não tem a alarmante aventura da descoberta, mas também não tem a melancolia da recordação, tem sim a ditosa certeza do instante. A esperança é um vestuário novo, rígido e justo e brilhante, porém nunca o envergámos e portanto não se sabe como assentará ou como se ajustará. A recordação é um vestuário usado que, por belo que seja, não serve, porque não se cabe nele. A repetição é um vestuário inalterável que assenta firme e delicadamente, não aperta nem flutua. A esperança é uma deliciosa rapariga que nos escapa entre mãos; a recordação é uma bela mulher avançada na idade com que no entanto nunca se está vem servido no momento; a repetição é uma amada esposa de que nunca se fica farto; porque só do novo se fica farto”, eis uma passagem do livro ‘A Repetição’, de Soren Kierkegaard, o filósofo existencialista dinamarquês cuja influência no cinema também ela se vai repetindo, de Ingmar Bergman a Woody Allen, passando por Antonioni, e outros mais. Não estranha pois que Jonás Trueba tenha recorrido a Kierkegaard para obter e conferir suporte teórico à construção de uma premissa que responda à (sua) crise existencial perante a vida e o cinema. Em Volveréis (2024) – assim encerramos, no último sábado no Cinema São Jorge, a Retrospetiva Jonás Trueba e o Especial Leffest – o ato de repetição é posto em prática, tal como quem testa sistematicamente uma experiência científica, para evidenciar que ela faz parte do curso natural da vida, e por conseguinte também do cinema, que se constrói a partir de sucessivas repetições, nas ideias, nas influências, nos takes ou na montagem, na busca do aperfeiçoamento até à derradeira versão; como tal, a presença vincada da repetição no filme é apenas a diluição da vida no cinema, mesmo que tal possa provocar enfado, monotonia ou tédio, também eles ingredientes da vida. A repetição é crucial para absorvermos, assimilarmos, tomarmos consciência do ato de viver de Jeanne Dielman, precisamente em Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman; ou de Hirayama, em Dias Perfeitos (2023), de Wim Wenders. Neste círculo cinema-vida-vida-cinema de Volveréis – há um belo plano que mostra a equipa do filme dentro do filme a despedir-se numa praça de Madrid, à noite, em que vemos um grande círculo desenhado pela calçada, isto depois de discutirem sobre se estavam perante um filme de cinema linear, em linha reta, ou circular – a repetição é, pois, a carta que devolve ao presente a construção do futuro.
Tal como em La virgen de Agosto (2019), em que Eva (Itsaso Arana) se deparava e confrontava com o passado, o presente e o futuro, também em Volveréis essa encruzilhada toma conta do casal Ale (a fabulosa Istaso Arana, novamente brilhante, fulgurante, sempre em ascensão, desde La Reconquista [2016]) e Alex (Vito Sanz, que escreveu o argumento juntamente com Jonás e Itsaso) – a mesma dupla de atores que deu vida ao par final de La virgen de Agosto -, ela realizadora e ele ator dos filmes dela, que decidem separar-se e organizar uma festa de celebração. Aparentemente decididos, determinados e até entusiasmados com a organização do evento festivo – concordam em seguir uma ideia do pai de Ale, de que as separações é que devem celebrar-se e não as uniões; no final da sessão, o próprio Trueba confessava que era algo que o pai dele dizia -, eis que um ator amigo de Ale dá-lhe a conhecer um baralho de cartas de tarot dos filmes de Bergman que, segundo ele, serve para encontrar respostas para o passado, o presente e o futuro, mediante a escolha de três cartas. A partir deste momento, em que o filme introduz o nome de Bergman, automaticamente o nosso subconsciente remete-nos para o seu cinema, e então começamos a pensar e a imaginar que repetição da vida do realizador sueco com a atriz Liv Ullmann – também eles um casal a determinada altura – e que repetição do seu cinema, particularmente o icónico ‘Cenas da Vida Conjugal’ (1973), ou o profundamente existencialista ‘Paixão’ (1969), poderia Trueba nos apresentar. Mas mesmo com Bergman e Ullmann citados de novo, desta feita pelo pai (Fernando Trueba, realizador e pai de Jonás) de Ale – desassombradamente diz que Kierkegaard é um doido como era Bergman sem Ullmann, apesar de recomendar e entregar à filha o livro ‘A Repetição’, do filósofo dinamarquês, isto enquanto recebe Ale e o irmão para um almoço de paella no jardim da bela casa, vestindo um roupão, com uma figura e um rosto que nos faz lembrar o próprio Bergman, um rosto que a câmara foca, deixando-se ficar nele demoradamente, como que nos convocando para fazermos esse transfer até ao cineasta sueco -, Volveréis nunca veste o traje bergmaniano de crueza, fricção, tensão, violência física ou verbal, por sua vez, o filme de Trueba encontra, como nos restantes filmes que dele visionei, conforto algures entre a elegância do cinema de Éric Rohmer e a comicidade do cinema de Woody Allen, entre as indefinições, indecisões, inseguranças, muito vertidas nas conversas, que vemos nos cinemas de ambos.
E é também pela repetição das figuras de Ale e Alex, e de uma certa reconstrução, recriação, que um vai fazendo do outro, através da arte – ela, na montagem do filme em que ele participa; ele, no retrato que pinta dela – que constatamos a força do ato de repetir enquanto reforço, consolidação, de um amor que se tem, que se vive. Extremamente curiosa também a repetição daquilo que mencionei no escrito sobre o rosto de Itsaso Arana, em La virgen de Agosto, como parecendo um autêntico retrato desenhado com detalhe e delicadeza, e os planos em que vemos Alex a retocar na tela, delicadamente, os traços do rosto de Ale, de Itsaso. Incrível!
“Um par nunca se separa”, ouvimos o velho dono de uma loja responder a Alex sobre a possibilidade de comprar apenas uma das duas cadeiras em exposição; eis então que chega Ale e compra o outro par, viabilizando assim o negócio. É já sentados nessas cadeiras que Ale lança as cartas do tarot de Bergman a Alex, colocando-o de frente para passado, presente e futuro. O passado já passou, já não importa, como em La Virgen de Agosto, a carta do presente devolve-lhe o rosto de Liv Ullmann, que corresponde ao também belo e presente rosto de Ale, e a carta do futuro devolve-lhe um soaring [subindo, elevando-se nos ares]. Já em casa do pai de Ale, nos preparativos para a tão repetida festa – a amigos, a familiares, e até ao vizinho e ao indiferente canalizador -, eis que a câmara se esforça para nos mostrar de baixo até cima a imponente Torrespaña (torre de telecomunicações), que estará como pano de fundo no palco da cerimónia festiva. Será esse o momento de converter o futuro em presente e o presente em futuro, e sintonizar o amor da repetição? Diria que sim, provavelmente. Pelo menos assim parece acreditar Jonás Trueba com a sua premissa.