‘O Quadrado’, de Ruben Östlund
DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
Ontem à noite, num dos canais de notícias da nossa televisão, um dos convidados falava sobre o enviesamento – diria que deve ser falta de memória interna – nas respostas geradas pela DeepSeek (uma startup chinesa que é a mais recente coqueluche da inteligência artificial), sempre que as questões colocadas incidem sobre certos episódios históricos, como o massacre na Praça Tiananmen, em 1989, por exemplo, ou acerca de modos de atuação da autocracia de controlo digital levada a cabo por Xi Jinping. De repente dei por mim a imaginar que, um dia destes, a inteligência artificial chinesa e/ou os Musk’s americanos do algoritmo vão criar uma espécie de quadrado digital, traçado com linhas, limites, cujo interior (do quadrado) irá conter e definir a conduta que o indivíduo deve seguir: que valores, que ética, que moral, que religião, que liberdade, que ideais, que responsabilidade. Dentro dos limites do quadrado estará o bom, o certo, o justo, o permitido; fora dos limites só restará o mal, o errado, injusto, o proibido. Convém dizer que algumas horas antes tinha estado durante 147 minutos a (re)ver ‘O Quadrado’ (2017), de Ruben Östlund – escolha DA VAGA REALIZADOR DO MÊS -, e ainda tinha retida na mente a frase gravada na placa que identifica a obra de arte (precisamente ‘O Quadrado’): “Santuário de confiança e de solidariedade; dentro dele todos temos os mesmos direitos e obrigações”. Imbuída no espírito da estética relacional, ‘O Quadrado’ – na verdade, uma obra de arte ficcional, construída no filme, mas cuja autoria na narrativa é atribuída à argentina Lola Arias, sem o consentimento da artista, de acordo com a própria, e assim se começa logo a saltar fora dos limites do quadrado – estimula e desafia o espectador para a imagem e a ideia de confiarmos e sermos solidários com os outros à nossa volta, num espaço de quatro metros quadrados. As imagens iniciais do filme a mostrarem a instalação de ‘O Quadrado’ no átrio de entrada do Museu de Arte Contemporânea de Estocolmo, fruto de trabalho minucioso, rigoroso e geométrico na calçada, isto após ser derrubada a estátua de um homem a cavalo – abaixo símbolos de poder e conquista para dar lugar ao santuário da confiança e da solidariedade -, transportaram-me para a preparação da fotografia, do retrato de família, que o também minucioso, rigoroso e geométrico fotógrafo tirou logo no início de ‘Força Maior’ (2014). E se nesse filme anterior de Östlund questionamos o que há para lá da fotografia; em ‘O Quadrado’ perguntamos o que há fora dos limites.
O Museu X-Royal está para ‘O Quadrado’ (filme) como o hotel alpino na estância de esqui está para ‘Força Maior’. Sobriedade, elegância, modernidade, mas também frieza, saltam à vista, e também um certo rigor geométrico: em ‘Força Maior’, exponenciado particularmente pelo ritmo ordenado dos veículos limpa-neves, pelas rampas mecânicas/rolantes, pelos cabos e roldanas dos teleféricos; em ‘O Quadrado’, particularmente pelos vários planos colhidos na exposição dos montinhos de cascalho, todos com a mesma quantidade de pedrinhas, aparentemente, até que algumas são varridas por acidente de percurso. Ao convocar um museu e a própria arte contemporânea para o seu filme, Östlund está simultaneamente a convocar a própria sociedade (contemporânea), como um todo, pulando da esfera mais particular de ‘Força Maior’ para a esfera mais geral em ‘O Quadrado’, promovendo o transfer de um plano de contexto mais familiar para um plano de âmbito mais social. De todo o modo, assistimos, igualmente, ao confronto ou paralelo entre a moralidade – da razão e da ética – e a disposição para animalidade – dos prazeres imediatos, das necessidades fisiológicas, dos impulsos sensoriais – kantianas. ‘O Quadrado’, enquanto obra de arte, com as suas linhas ou limites, serve como máscara de moralidade, moralidade essa que é obliterada sempre que a ameaça surge, e quando a ambição se impõe à causa, mas que também desvanece quando os holofotes se apagam, conferindo o palco à disposição para a animalidade. As reações em cadeia do protagonista, Christian (Claes Bang) – o curador do museu -, após o roubo do telemóvel e da carteira; o medo e as respostas violentas dos espectadores perante a grotesca e abrupta performance do homem-macaco, numa clara hiperbolização da estética relacional; a cedência do museu ao marketing sensacionalista, imoral até, cujos princípios começam e acabam na vontade desenfreada de atrair os Media e conquistar as redes sociais, por parte dos responsáveis pela campanha de comunicação da obra; as festas privadas e extasiadas no interior do museu; o sexo desligado de afetos de Christian com a jornalista; ou a debandada geral em passo acelerado dos convidados da exposição rumo ao buffet, mal o chef começara a descrever a carta, são exemplos paradigmáticos.

E a moralidade, assente também na confiança e solidariedade consagradas em ‘O Quadrado’ (obra de arte)? Resiste, a muito custo, numa conversa/entrevista em que um homem que sofre de Síndrome de Tourette interrompe, obscenamente e por sucessivas vezes, o artista e a moderadora; resgata-se pela direção/administração do museu quando tem de gerir a crise espoletada pelo vídeo para comunicação da obra de arte – que foi parar ao Youtube – da criança que explode no interior d’O Quadrado’; resgata-se por Christian depois de o mal já estar mais que feito; e cumpre-se, efetivamente, por um mendigo que responde afirmativamente ao pedido de ajuda de Christian e larga o seu posto de receção de donativos para auxiliar um desconhecido pai aflito – executando assim a premissa de ‘O Quadrado’, a obra de arte.
Assim se encerra a passagem de Ruben Östlund em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, ficando a convicção de que voltaremos ao seu cinema, certamente, seja em que VAGA for.