GUIdance 2020

E há fevereiro sem GUIdance? Não. Já é um clássico da nossa agenda Mutante e da sua também, muito certamente. A Edição de 2020 começa hoje, dia 6 fevereiro, e o programa é a não perder, para os amantes da dança contemporânea.

De 6 a 16 de fevereiro, em Guimarães, a programação do Festival Internacional de Dança Contemporânea navega por entre espetáculos, masterclasses, debates, talks e ensaios abertos para as escolas, com o Centro Cultural Vila Flor (CCVF) a servir de fonte de energia criativa para a cidade. Com Vera Mantero em destaque e a vestir várias peles nesta edição, o GUIdance 2020 inicia-se com a força da criação nacional, com Onironauta de Tânia Carvalho, e para o final reserva-lhe a peça de todas as peças – A Sagração da Primavera – por Marie Chouinard, que lhe fará reiniciar esta viagem pondo-o em contacto com um renascido ponto de partida.


© Tânia Carvalho, Onironauta, por Rui Palma

O GUIdance chega aos 2 dígitos e celebra um forte legado emergido ao longo da última década na cidade de Guimarães, que se tem vindo gradualmente a converter em pólis da criação. Um acontecimento para o qual convoca um grupo de mulheres fortes e 3 homens alinhados com elas. As várias sensibilidades em jogo no programa remetem-nos para uma ideia de construção de tempo que escapa a uma interpretação linear, procurando estabelecer nexos que resultam de uma formação multifragmentada e multidimensional. E ao olhar por uma lente mais apurada, propõe-nos que habitemos o domínio do sonho (imaginação do inconsciente) e suas variantes, a partir de um lastro de vida no feminino. Um programa que nos incita a sentir, pensar e sobretudo a fazer-nos viver em zona aberta a outras soluções, porque o mundo não pode encalhar no passado de decisões que já não funcionam no contexto atual.

Através da inesgotável força criativa da mulher, a 10.ª edição do GUIdance “liga a história do festival à história da dança contemporânea portuguesa (inclusive ao Ballet Gulbenkian) para deixar tudo num novo ponto de partida e nos questionarmos em relação ao lugar para onde nos dirigimos. Propondo-nos um lugar de energia vital, onde se imagina ter havido um grande clarão de luz momentos antes da origem da criação da peça de todas as peças: A Sagração da Primavera, coreografia consagrada na história da dança do século XX. Marie Chouinard, que em 2003 abraçou esta peça na companhia do Ballet Gulbenkian, revisita agora esta marcante criação que será apresentada Centro Cultural Vila Flor (CCVF) no dia 15 de fevereiro. Com mais de 40 anos de carreira, a coreógrafa canadiana assinala assim a sua estreia no GUIdance com duas peças particularmente significativas do seu repertório: A Sagração da Primavera (1993) e Henri Michaux: Mouvements (2011).”


© Naïf Production, Des Gestes Blancs, por Mirabel White

Vera Mantero é a coreógrafa em destaque nesta edição que assinala os 10 anos de um festival que já se tornou referência obrigatória, na dança, e dá sentido e força à expressão: “dança é uma palavra no feminino“. Depois da estrear em absoluto a sua mais recente criação (em colaboração com o construtor sonoro e cénico Jonathan Uliel Saldanha) no Festival d’Avignon, “Vera Mantero apresenta no GUIdance o espetáculo Esplendor e Dismorfia a 7 de fevereiro, em estreia nacional, surgindo novamente para abrir a segunda semana do festival com Os Serrenhos do Caldeirão, exercícios em antropologia ficcional (12 fevereiro), criação de 2012 em que se debruça sobre a desertificação e a desumanização da Serra do Caldeirão, no Algarve.”

A recém-estreada peça Onironauta, de Tânia Carvalho, desperta-nos o olhar logo no arranque desta edição (6 fevereiro), colocando em palco sete bailarinos ou encarnações físicas de um onirismo sob controlo, sete corpos saídos dos limbos amargos de um sono desperto, acompanhados em cena pela coreógrafa, ao piano. Depois da estreia em Marselha e da passagem por Lisboa, Tânia Carvalho regressa assim ao GUIdance – depois de, em 2017, ter estreado Captado pela Intuição – para inaugurar esta edição do festival. Com uma carreira de mais de duas décadas, a coreógrafa volta a criar uma peça comovente e arrepiante, como alguns sonhos perturbadores dos quais se acorda confuso e a tremer.


© Marie Chouinard, The Rite of Spring, por Nicolas Ruel

A coreógrafa Marlene Monteiro Freitas convida-nos a visitar Bacantes – Prelúdio para uma Purga no dia 13 fevereiro no palco maior do CCVF. Nesta tragédia grega de Eurípides percorre-se o delírio, o irracional, a histeria, a loucura, vai-se da ilusão à cegueira e da cegueira à revelação. Eis o mundo, moral e estético, que Marlene Monteiro Freitas nos incita a percorrer neste seu regresso aos palco do GUIdance. Música, dança e mistério conduzem-nos quão funâmbulos sob o fio da intensidade, num combate de aparências e dissimulações, polarizado entre os campos de Apolo e Dionísio.

Outro regresso ao festival é o da efervescente e impetuosa Akram Khan Company, que aqui assinala a estreia de Outwitting the Devil (8 fevereiro) em Portugal. “Este espetáculo, inspirado num fragmento da Epopeia de Gilgamesh, descreve a admiração do rei semidivino da Suméria pela abundância e biodiversidade, sendo, por isso, considerado o primeiro poema ambiental do mundo. Num épico de tábuas quebradas e ídolos caídos, interpretado por um elenco de bailarinos de diferentes culturas e gerações, o espetáculo começa em torno de uma grande caixa de madeira preta, que sugere uma mesa e também um túmulo – a primeira e a última ceia, lembrando a pintura da australiana Susan Dorothea White que reformula a obra icónica de Leonardo Da Vinci ao colocar apenas figuras de mulheres, desafiando assim as suposições da cultura patriarcal que também era comum a Gilgamesh.”


© Sofia Dias e Vítor Roriz, O Que Não Acontece, por Filipe Ferreira

Esta edição do GUIdance revela igualmente duas estreias absolutas – RITE OF DECAY de Joana Castro (8 fevereiro) e Dias Contados de Elizabete Francisca (15 fevereiro) – concretizadas em regime de coprodução e residência artística em Guimarães. “Em RITE OF DECAY, a coreógrafa e performer Joana Castro, em colaboração com a artista sonora Diana Combo, parte da ideia da gestão de um corpo que se desmultiplica noutros, já extintos ou por vir. Numa dança sobre a morte, ou várias mortes. O fim do mundo como uma metáfora para a nossa própria degradação. Nos Dias Contados de Elizabete Francisca, o imaginário transporta-nos para Lisboa mas podia ser outra grande cidade, cujas transformações socioeconómicas radicalizam a vida das pessoas – em particular as mulheres – e nos obrigam a refletir e a repensar modos de vivência, de resistência e de insurreição. Dias Contados põe em palco Elizabete Francisca e Vânia Rovisco, dois corpos-escultura, corpos-ação, que através de gestos, imagens e palavras, restituem um olhar sobre a conceção de comunidade, território e pertença.


© Vera Mantero, Os Serrenhos, por Luís da Cruz

O que não acontece marca presença no GUIdance pelas mãos de uma dupla de criadores portugueses com larga história colaborativa: Sofia Dias & Vítor Roriz. A coexistência de palavras e movimento é uma das questões centrais neste trabalho da dupla de coreógrafos e bailarinos, que aqui leva ao extremo a tensão existente entre os dois. No final de tudo, o que parece sobressair na massa de palavras, ideias e imagens em movimento, é o desejo de estar em relação e de construir um espaço comum. Acolhedor e igualmente perigoso.

A programação com um foco muito especial nas famílias, embora dirigida a todos, manifesta-se a 15 e 16 de fevereiro, sempre às 16h00, com Caixa para Guardar o Vazio, espetáculo da autoria de Fernanda Fragateiro com coreografia de Aldara Bizarro, e Des gestes blancs da Naïf Production, criação de Sylvain Bouillet com dramaturgia de Lucien Reynès. “Composta por madeira, espelho, aço, e um tapete de algodão negro, Caixa para Guardar o Vazio é uma escultura, mas também um lugar para explorar com o corpo e com todos os sentidos, num processo de descoberta individual ou coletivo, num atelier performativo especialmente pensado para as crianças, proporcionando-lhes um papel ativo e criador. Em Des gestes blancs, oito é uma idade emocionante, a imaginação é imensa e a energia nunca acaba. Entre a independência autodeclarada e a necessidade de cuidado e conforto, as crianças correm, sem freios e sem pausas, e aprendem, brincando. Pai e filho de 8 anos, exploram um relacionamento altamente físico e emocional, numa jornada de descoberta tanto para o adulto, como para a criança atrevida.


© Henri Michaux Mouvement, DR

As imprescindíveis e igualmente centrais atividades do festival oferecem a oportunidade de contacto com alguns dos mais importantes e celebrados coreógrafos internacionais a profissionais e alunos de dança nível avançado através das masterclasses com a Akram Khan Company (7 fevereiro) e a Compagnie Marie Chouinard (16 fevereiro). A programação paralela do festival chega a todo o público por intermédio de dois debates (8 e 15 fevereiro) moderados por Cláudia Galhós sob o mote “Pensar, Sentir, Dançar”; conversas pós-espetáculo que marcam encontro de criadores como Vera Mantero, Akram Khan Company e Compagnie Marie Chouinard com o público após os respetivos espetáculos, para um momento de proximidade descontraído e interativo; os embaixadores da dança que levam coreógrafos como Tânia Carvalho e Sofia Dias & Vítor Roriz a partilhar o seu percurso, a sua experiência de vida e as suas visões artísticas em contexto de sala de aula. Uma visita devolvida depois pelos alunos, para assistirem ao espetáculo do criador que com eles estabeleceu um sentido de partilha; e ainda ensaios abertos para escolas de dança de Guimarães, que durante o GUIdance são convidadas a assistir aos ensaios das companhias presentes no programa, seguidos de uma conversa com Cláudia Galhós.

Por tudo isto, se a dança contemporânea faz parte do seu existir, rume a Guimarães, ao CCVF, para se deixar levar por espectáculos imperdíveis. •

+ GUIdance 2020 – Programação
© Fotografia em destaque: Akram Khan Company, Outwitting the Devil, por Jean Louis Fernandez.

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui .