“Tela Habitada”: o Olhar / Helena Almeida

1976, ano a que pertence esta “Tela Habitada” de Helena Almeida, uma das diversas que nos legou e que faz parte da Coleção Moderna do Museu Calouste Gulbenkian, e que nos vem hoje visitar num dia 8, de Abril de 2020. 

Helena Almeida, em entrevista a Marta Moreira e João Ribas, que seria publicada no ano de 2016 em Helena Almeida: a minha obra é o meu corpo, o meu corpo é a minha obra, também dirá o que se segue, aparentemente em contradição uma coisa com a outra: “Porque é que eu dei cabo da pintura… – no fundo não dei cabo, no fundo sou pintora, não é? Mas passei a ser a pintura, passei a ser a minha obra, passei a ser a coisa criada. E ao mesmo tempo sou o criador. E não sei dizer porquê”; e “Não, aquilo não sou eu. Aquilo é o outro. Eu estou a contar uma história, mas vou fantasiando. Não estou emocionada quando estou a fazer as coisas. Estou muito distanciada. Posso ter uma grande emoção e dizer ‘vou fazer isto’ mas depois tenho de ganhar distância para conseguir pôr aquilo em prática.” A esta aparente contradição regressarei mais à frente.

Esta “Tela Habitada” radiografa, através da fotografia, as condições materiais da pintura: já que apresenta a grade, mas também a tela, aqui em transparência e na forma de película, pelo que vem como tela-película, situa em perspectiva o corpo da artista e, visto dividir a superfície em 16 sub-unidades fotográficas, apresentado cada uma destas uma encenação diferenciada (exceptuando dois cantos, o superior esquerdo e o inferior direito), julgo que podemos chamar a essas sub-unidades fotogramas. A grade apresenta o aspecto de uma janela de guilhotina e, portanto, transporta-nos para uma fronteira: a da perspectiva desenvolvida na pintura renascentista, coordenada com a expressão-presença proposta pela arte moderna; conjugando tal fronteira com a tela-película que, pela transparência, nos faz assistir à história animada pelo corpo da artista, e permanecendo atento/as a esta história, podemos chegar a algumas reflexões bastante interessantes, e estimulantes. 

Representação e Expressão-Presença: estando a primeira para a arte renascentista e tendo sido a responsável pela formulação de uma muito singular forma de conduzir o olhar, traduzida na teatralização perspéctica do Mundo; estando a segunda para a arte moderna e assumindo-se, por um lado, como programa detonador da caixa-do-olhar herdada, por outro, como movimento que implode o corpo do/a artista, em vertigem perceptiva, dando a ver o interior; Helena Almeida mostra-as em contiguidade. Se seguirmos a encenação proporcionada pelo corpo da artista, perceberemos que também coloca um problema de identidade, patente na forma como conseguimos reconhecer o rosto de Helena Almeida: se estiver para lá da tela-película, se estiver para cá da tela-película, mas não ao confundir-se com ela. Cruzando a referida contiguidade com a questão do reconhecimento do rosto, podemos concluir que, na arte, no olhar, é necessário preservar, sempre, uma distância.

A questão da distância é muito significativa, pelo seguinte: a arte moderna pretendeu, também, reclamar a verdade, em face do que considerava ser a construção enregelada com que a perspectiva renascentista acabaria por envolver, afastando-a no mesmo gesto, a realidade. A arte moderna, por tal, trouxe as “coisas” à pele dos olhos, penetrou-as tanto docemente, como com virulência, excisou o seu coração, para no-las devolver em expressões diversas: carne-viva, veludo, fios de água; em todo o caso, a arte moderna quis-nos sempre dizer que estava no meio de nós, que estava presente. O facto de, por vias complexas e sociais, ter criado abismos de entendimento, será outra história. 

Helena Almeida, assim, e em “Tela Habitada”, pretende transmitir-nos que a distância é fundamental, o que nos faz entender agora bem aquela aparente contradição de ser ela a pintura ou/e, pelo contrário, ser o outro, por onde comecei esta reflexão de hoje. Ou seja, é ela, para nós, se respeitarmos a devida distância; mas, quando se confunde com a tela-película, momento em que se manifesta propriamente, dando-se a ver, a obra de arte, não é Helena Almeida que está ali, mas sim outra “coisa”. Esta outra “coisa” é um lugar que a obra de arte tão bem proporciona, um lugar de reinvenção, de nova possibilidade, de promessa. Porque, reparem: assim como não é Helena Almeida na obra de arte propriamente dita, também não sou eu, nem qualquer um/a de vós a podermo-nos ali projectar grosseiramente, precisamente porque há ali um corpo que me/nos encara. Logo, é outra “coisa”. 

Se, entretanto, recuperarmos os cantos superior esquerdo e inferior direito de “Tela Habitada”, rigorosamente iguais e não-inscritos, creio que podemos ensaiar diferentes hipóteses, decorrentes da circularidade que enunciam: Helena Almeida foca o eterno gesto que cada obra de arte coloca sempre de novo…; Helena Almeida chama a atenção para o carácter infinito da experiência nascido na Modernidade…; Helena Almeida alerta-nos para o problema do corpo na contemporaneidade, o próprio, o da obra, o meu/vosso… Creio que não teremos de decidir neste momento, mas algo me surge com grande claridade a partir de “Tela Habitada”: a opacidade da obra equivale à do corpo, o que se verte em análoga resistência.

Imagem de entrada: Tela Habitada. 1976, Aparite e Cartão. Fotografia / Helena Almeida © Gulbenkian

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