2013, ano em que “Tranquila ferida do sim, faca do não” faria duas aparições em dois locais distintos: Galeria Filomena Soares, em Lisboa, primeiro, e Centro Internacional das Artes José de Guimarães, em Guimarães, integrada na exposição “Lições da Escuridão”, depois.
“Tranquila ferida do sim, faca do não”, escultura-instalação de Rui Chafes, baseia-se em cinco estruturas de ferro iguais, com as dimensões de 78 x 27 x 300 cm, pintadas de negro, rectangulares e finas, delimitadas por duas lâminas que simulam arcos, e, no espaço que entre elas se define, uma placa de ferro finamente esburacada; dispõem-se ao longo de uma das paredes de cada uma das salas em que se apresentou a escultura-instalação, colocadas longe do chão. Baseia-se, acentuamos; porque a proposta de evasão de Rui Chafes convoca o espaço na sua totalidade, primeiro, para depois vir a dividi-lo em dois planos, aquele em que entramos primeiro, o de acesso à experiência, o outro que nos absorve depois, confirmando que realmente experienciamos, algo.
Entramos numa sala, no que sabemos ser uma sala; no entanto, somos logo engolida/os por escuridão espessa, o que, em função das características do espaço, me proporcionou sensações diferenciadas: em Lisboa, pelo facto da sala ser maior, a entrada num mundo espectral, de sombras; em Guimarães, pelo facto da sala ser menor, a queda num poço. Também pelas dimensões das salas se proporcionavam, quando a luminosidade progressiva e vagarosamente irradiava das estruturas de ferro, sensações diferenciadas: em Lisboa o seu maior afastamento, parecendo assim longínquas, como se fossem, e viessem, de outro tempo; em Guimarães a sua maior proximidade, aparecendo relativamente familiares, como se nos fizessem estreitamente companhia. Daí que, apresentando-se as estruturas de ferro com tal aspecto que pareciam arcos, e definindo-se em “Tranquila ferida do sim, faca do não” uma ambiência sacrificial, também relacionada com o tempo de espera para que a luz se declarasse e que me solicitou a urgência de uma oração, tão íntima quanto protectora, e registando-se, concomitantemente, a admiração de Rui Chafes pela Europa Gótica: eis que em Lisboa vi delinear-se uma catedral, para em Guimarães reconhecer uma igreja românica.
Dois aspectos me parecem dever ser muito vincados na experiência proporcionada por “Tranquila ferida do sim, faca do não”, e que nunca será repetitivo frisar: não se trata de uma escultura-instalação de cinco estruturas de ferro; e não se trata, sequer, de uma exposição de escultura, e nela, “Tranquila ferida do sim, faca do não”, por isso, é demonstrado cabalmente o princípio que Rui Chafes já vincou não apenas uma vez, ou seja, o de que gostaria que as “suas esculturas” passassem entre nós, como o vento. Além de ter conseguido antecipar na experiência proporcionada por “Tranquila ferida do sim, faca do não” a diluição do “objecto” para maximizar a energia que dele emana e nos atinge, Rui Chafes ainda conseguiu fazer outra coisa: instalar em cada sujeito uma vela ardendo.
“Tranquila ferida do sim, faca do não” ancora-nos num tempo, ou melhor, prova-nos que pertencemos originariamente a um tempo-terra, também trama colectiva, que, no entanto, assume características espectrais passíveis de infligir a dor, tanto a de nos perdermos, como a de perdermos quem amamos, ou a de nunca virmos a encontrar uma pessoa; para depois, não sem esforço e paciência, já que, repito, é preciso esperar realmente para que a luz das frestas se declare, proporcionar a ocasião de individuação ao demonstrar a separação dos seres, numa solidão inviolável cujo interior se protege através das lâminas laterais. No entanto, o interior constela, daí ter afirmado que se instala em cada sujeito uma vela ardendo, sujeito que profere, em simultâneo, a sua oração, e que se faz ouvir no meio de outras velas ardendo e de outras orações a serem proferidas, e que por isso cria um ritmo e uma musicalidade. Porque as cinco estruturas de ferro que, pelo que tenho vindo a expor, não são as esculturas de “Tranquila ferida do sim, faca do não”, mas sim as frestas que permitem vislumbrar a forma interior do sujeito, são precisamente cinco, e não apenas uma, porque as cinco são iguais, e porque se alinham em compasso e, portanto, transmitem-nos um acordo.
Através de Rui Chafes, com “Tranquila ferida do sim, faca do não”, e como Tarkovsky também o vincou, prova-se a existência do artista como veículo e não como validação de uma autonomia fechada, passando, através dele, eu, vós, nós e, claro, a Música.
No Comments