Com todo o método de confinamento e distanciamento social que o momento que atravessamos nos exige, seguimos n’”O Método” de Rodrigo Leão para dois dedos de conversa, tentando nunca perder de vista um método base para rapidamente esmiuçar o novo álbum de originais de tão virtuoso músico e compositor.
Com mais de 25 anos de carreira, Rodrigo Leão é referência obrigatória na música contemporânea nacional e internacional, a par de nomes como Sakamoto ou Einaudi. Nas suas colaborações tropeçamos em nomes como Beth Gibbons dos Portishead, Neil Hannon dos Divine Comedy, Scott Matthew, Rui Reininho dos GNR, Joan as Police Woman, Stuart Staples dos Tindersticks ou Lula Pena. Não precisa de comparações. Não vamos compará-lo. É singular e a sua música tem uma identidade que lhe reconhecemos a cada nova composição, sem nunca ser igual, sendo sempre uma nova viagem.
Na sua composição não há comodismos, sim a procura constante de novas possibilidades “entre o popular e o erudito, o electrónico e o orquestral“. Músico que tantas vezes, nos seus álbuns, nos transporta para paisagens cinematográficas – que não conseguimos evitar imaginar -, já preencheu o grande ecrã com um corpo sonoro ímpar em filmes como “O Mordomo” ou a inesquecível “Gaiola Dourada”, bem como para séries para TV e documentário.
Senhor de um palmarés invejável e já bem longo, brinda-nos com um novo álbum – “O Método” – co-produzido pelo músico, compositor e produtor Federico Albanese, preenchido “essencialmente com piano acústico e ambientes electrónicos, com a presença pontual de uma pequena secção de cordas, alguns instrumentos eléctricos e acústicos, e do coro da Academia Musical dos Amigos das Crianças“, onde cantam os seus três filhos.
Foi “O Método” que nos levou a uma desejada conversa com Rodrigo Leão (RL), conversa que hoje, aqui, vos revelamos.
Com Descartes “Je pense, donc je suis”. Aqui, um álbum criado para “coloca[r] perguntas em vez de respostas, convidando o ouvinte a pensar e a sentir”. Se colocarmos que pensar é existir e existir é sentir, poderia assumir-se que é um álbum que nos quer fazer existir?
RL: Talvez por grande parte da minha música ser muito subjectiva e abstracta, acabo por sentir que nunca há da minha parte a procura de um sentido para dar explicações ou respostas concretas. É um álbum que nasce de pequenas ideias que vou construindo no meu dia à dia e que acabam por ser influenciadas por pessoas e sítios que me rodeiam. Nesse sentido penso que é uma música que nos traz algum sossego e por isso nos pode dar algum espaço para sentir e existir.
“A cor possui-me. Não tenho que correr atrás dela. Ela ter-me-á para sempre. Eu sei. Esse é o significado desta happy hour: a Cor e eu somos um só.” Paul Klee.
Permanecendo na existência, Klee existe na cor, no acto criativo pela cor. Rodrigo Leão é música? Existe um Rodrigo Leão separado da música e do seu acto criativo? Ou são um só, uma constante da vida?
RL: Existe uma parte minha que por vezes está muito afastada da música que eu tento fazer. É a parte mais mecânica e mais concreta que todos temos um pouco. Quando temos de ir fazer compras, pagar contas, ir à oficina com o carro, etc.
De qualquer das formas, por vezes existem momentos, que sem nos apercebermos se encontram com a nossa parte mais criativa e que podem ser importantes para algo que estamos a tentar procurar. Algumas pessoas, sítios que aparentemente não nos digam nada, podem mais tarde fazer parte de uma forma muito imperceptível de alguma ideia que eu esteja a tentar desenvolver.
Sendo um criador de paisagens cinematográficas, pela e através da música, será um músico/ compositor também um pintor?
RL: Sou um músico autodidacta e isso acabou por ser um aspecto muito importante em todo o meu percurso. Fui desenvolvendo um gosto particular pela composição, mas sempre dentro de um universo musical muito diferente de alguns músicos com formação.
Isso fez-me tentar encontrar uma maneira de descobrir ideias através das minhas poucas bases musicais, com alguma necessidade de as mostrar às pessoas que me eram mais chegadas e com influências que iam desde a música que se fazia no início dos anos 80 até à música clássica que ouvia muito em casa dos meus Pais. Quando tento fazer um desenho é com a mesma intenção como quando tento fazer uma música. Sinto que há sempre uma simplicidade e ao mesmo tempo uma inocência quase infantil que está sempre dentro de mim. Acredito que existe uma relação muito grande entre a música e a pintura.
“Enfatizar apenas o belo faz-me lembrar um sistema matemático que se preocupa apenas com os números positivos”, Paul Klee. Nas ‘paisagens’ por si criadas é importante, também, que elas nos transportem e nos façam pensar em cenários menos belos? Criar o equilíbrio no pensar e no sentir, revelando-nos que há momentos mais complexos, difíceis?
RL: As ideias que procuro são quase sempre muito espontâneas. É evidente que consoante o meu estado de espírito, o sítio onde me encontro ou as pessoas que me rodeiam podem contribuir de uma forma subjectiva para o resultado final dessas mesmas ideias. Tenho a noção de que existem músicas mais felizes que outras.
Há momentos da nossa vida mais difíceis, que, quer eu queira quer não, acabam por ficar ligados a essas ideias.
“É um disco mais contido, mais simples, mais depurado. Um pouco mais espiritual também…”
Num ponto atrás, à primeira pergunta, Descartes fala, no seu Discurso do Método, da existência do Homem (corpo e alma) e de Deus (não puramente religioso). Não entrando no campo das provas e contestações, há no músico Rodrigo Leão um lado metafísico que o leva a criar um disco, como diz, mais espiritual?
RL: Há uma preocupação quase permanente na minha maneira de tentar compor que me leva, por vezes, a tentar afastar-me um pouco desta realidade em que vivemos. Nesse sentido há um lado mais espiritual em muitos dos ambientes procurados neste último trabalho que reflete todas as minhas dúvidas ou inseguranças que eu sinto frequentemente.
Como poderíamos definir o que é esse espiritual, na música deste álbum?
RL: É essencialmente nas tonalidades dos temas, nos acordes, melodias, mas também nos momentos que passo sozinho junto ao teclado a procurar encontrar ideias que para mim fazem sentido guardar. São por vezes sentimentos que eu próprio não consigo definir, que se misturam com o meu lado mais subjectivo e que têm sempre poucas certezas e muitas dúvidas. Há também por vezes um certo minimalismo quase hipnótico que pode, em alguns arranjos, despertar mais esse lado espiritual.
É como se tivéssemos alguns momentos em que questionamos mais a nossa própria existência.
Podemos afirmar que a música se sente no corpo e na alma? Ou sentimos na alma e isso reflecte-se no corpo… Alinha em responder a esta divagação?
RL: Na minha opinião, a música sente-se primeiro na alma, no cérebro e só depois se reflecte no corpo.
Como descreveria a um leigo o minimalismo na música para que ele não se confunda com música “simples”?
RL: Penso que existe um minimalismo na música mais erudita e outro numa música mais simples como a que eu faço. O minimalismo serve por vezes para reforçar o ambiente que está em determinada ideia ou até para transmitir alguma simplicidade.
Diz-nos que os primeiro passos, no processo criativo, são intuitivos, sem método. Porém, assume que “foi o disco onde mais procurámos um método para chegar a um resultado final” e que “é muito mais interessante sentir o método de uma forma mais abstracta, filosófica”.
Quão importante pode ser, ou não, o método – na Regra da Síntese – para o processo criativo?
Qual o papel da filosofia neste trabalho específico que aqui nos traz a esta conversa?
RL: A filosofia de uma maneira geral está presente em qualquer ser humano. Quando falo em sentir o método de uma forma mais filosófica e menos matemática é porque sinto na música que fizemos sentimentos e ambientes muito mais abstractos e sublectivos. Sinto que nunca há certezas nas minha ideias. Muitas vezes parece-me que preciso de algum silêncio para pensar. Não para pensar especificamente em alguma ideia em concreto, mas simplesmente para me fechar dentro do meu mundo e poder sonhar…
O Federico, convidado deste álbum, foi um condutor deste método do “Método” ou um GPS imprescindível?
RL: O Federico foi um músico que nos ajudou muito a conseguirmos organizar as ideias que eu já tinha trabalhado durante um ano com o João Eleutério e o Pedro Oliveira. Foi a primeira vez que tivemos a participação de um elemento exterior ao ambiente familiar com que habitualmente produzimos os meus trabalhos. Foi essencialmente na parte electrónica de alguns arranjos e na escolha do repertório que o Federico esteve muito presente. Foi sem dúvida uma colaboração que permitiu tornar este álbum um pouco diferente dos anteriores.
E o lado ingénuo, que também nos fala na sua apresentação do álbum, assumiu-o agora.
Já o sentia, mas este foi o momento em que decidiu expô-lo, a nós. Está de alguma forma relacionado a esta paisagem mais etérea, porquê assumir agora?
RL: Creio que esse lado mais ingénuo tem estado sempre presente na minha música. É uma consequência natural da minha maneira de ser, mas também pelo facto de ter aprendido a tocar com alguns amigos e ser autodidacta. Há uma necessidade de não perturbar numa ideia alguma essência que lhe está inerente. Por vezes sinto que algumas ideias ao manterem alguma dessa simplicidade inicial conseguem transmitir esse lado mais ingénuo.
Diz-nos que a sua “intenção era inventar palavras, para não ter de usar nenhuma língua específica e tornar as canções mais abstractas”. Fuga ao pensamento concreto, à realidade que conhecemos e a que vivemos, por vezes, tão presos? Ou a vontade de criar um “Esperanto” novo?
RL: Há uma necessidade de tentarmos não nos repetirmos. Não é a pretensão de fazer algo que nunca tenha sido feito, mas neste caso concreto e para este novo álbum a minha ideia foi a de tentar fazer uma música mais instrumental, mas com a utilização de vozes em alguns temas de forma menos clássica. Por outro lado, reforçar a ideia de um trabalho mais abstracto onde não existe a necessidade de palavras concretas.
Recordamos que Sofia, uma das filhas de Rodrigo, foi a voz escolhida para o primeiro single do álbum, “A Bailarina”, “uma encantadora canção de embalar entoada numa língua inventada.”
Por fim, para não massacrar mais com divagações… A capa.
No Malabarista, desenho tão cativante e curioso nascido da sua mão, estarei tão longe da verdade se disser que sinto a Comédia de Klee com olhos de Miró?
RL: É um desenho muito simples, obviamente influenciado por alguns pintores que eu gosto muito, e que acabou por ser feito durante a preparação deste novo cd. Esta vontade de desenhar nasceu recentemente em momentos menos produtivos quando estava a tentar fazer música. É algo que me dá alguma paz quando estou mais ansioso. Por isso mesmo sentimos que fazia algum sentido utilizá-lo para ilustrar “O Método”.
Um novo álbum obrigatório que se sente na alma e na pele, do primeiro ao último acorde – que conta ainda com as participações especiais na voz com Casper Clausen (dos Efterklang) em “The Boy Inside” e com o violino de Viviana Tupikova em “O Cigarro”. Um álbum que é um todo inseparável nas suas doze composições. Uma viagem imperdível no abstracionismo minimal da música.
Um músico incontornável que, certamente, deve fazer parte das suas playlists, há muito.
Para ouvir e reouvir enquanto não regressam os concertos, ao vivo, em palcos com público. •