Corpo Verde: de/para Júlio Pomar e Maria Velho da Costa

“Corpo Verde” trata-se de uma gravura que resulta de um conjunto de desenhos concebidos para um livro de Maria Velho da Costa, exactamente com o mesmo nome, e pertencente à mesma data: 1979.

O livro, “Corpo Verde”, foi publicado em Lisboa pela Contexto e possui, então, os desenhos de Júlio Pomar, que divergem na escala relativamente às gravuras correspondentes e apresentam, quase todos, dois corpos. O livro é composto por 23 versos de Maria Velho da Costa e por 8 desenhos de Júlio Pomar, e, sim, é sobre a sexualidade, mormente, sobre o encontro sexual. Na perspectiva de Maria Velho da Costa, plasmada em “Corpo Verde”, a mulher ocupa um lugar assinalável, seja na ordem do discurso, seja na esfera da acção, que se mesclam derradeiramente: é também protagonista do olhar – que recai sobre o homem; é senhora do desejo – que cumpre através do encontro sexual efectivo com o parceiro. Claro que, desta forma, “Corpo Verde” advoga pela liberdade da mulher, tanto quanto pela sua libertação relativamente a uma história passada de muitos interditos e de muitas palavras proibidas. 

É um lugar corrente, e também já o afirmei em diferentes contextos, que se remeteram as mulheres a exílios, uns mais dourados do que outros, mas não colho a tese de Simone de Beauvoir em relação a serem “o segundo sexo”. Uma coisa é fazer o elenco das condições materiais e simbólicas que vedaram historicamente às mulheres a sua manifestação plena através da linguagem, que desvalorizaram as suas construções de mundo, a sua expressão artística, em suma, que tornaram o masculino preponderante em face de valores feminis considerados frouxos, débeis, vulneráveis, sem impacto público e colectivo; outra, bem diferente, é daí inferir que são “o segundo sexo”, porque são, tão só e apenas, metade da humanidade.

Quanto a tais exílios, Michel Serres é peremptório em Hominescência quando afirma o seguinte: “Poderia, finalmente e sobretudo, manter alguma confiança na sensibilidade, na razão, no juízo, na própria virtude destes filósofos, antigos e modernos, de Platão a São Paulo e a Santo Agostinho, de Rousseau e Kant e Schopenhaeur que, todos e a uma só voz, pretendem que as mulheres e suas companheiras, evidentemente suas iguais, se reduzam, em conjunto, a animais inferiores? Como puderam desprezar a este ponto a única amenidade real da existência, uma coragem e uma resistência sempre superior à dos machos, a doçura do seu sono, a reciprocidade das suas carícias, a mãe dos seus filhos, aquela que, entre os lençóis, acolhe os recém-nascidos, os doentes e os agonizantes? Quando excluem metade dela, como continuar a escutar os seus discursos arrogantes sobre a humanidade? Este disparate lança-os pesadamente para fora do pensamento. Que sabiam eles do amor proclamado bem alto da bela palavra filosofia?”

Michel Serres é feminista, pelo que escreveu e aqui permanece gravado, e também porque crê na originalidade das mulheres, as mesmas que têm mais a mostrar e a provar num mundo que, manifestamente, foi criado, e continua a reverberá-los, pese embora as múltiplas conquistas, através de princípios masculinos. Creio, fervorosamente, que se torna muito necessário recuperar o corpo: a associação que se faz dele às mulheres, como se os homens fossem películas transparentes sem espessura, e de certa forma, transcendentalmente, pela herança histórica, são-no, exige um trabalho de resgate mútuo – homens e mulheres têm, mesmo, de dar-se as mãos e penetrar-se simbolicamente. A percepção de ter um corpo, de ser efectivamente espessura, é uma herança manifestamente feminina, já que a “palavra”, volátil, foi arrebatada pelo masculino: ora, é urgente que a “palavra” tenha “corpo”, não naquele sentido exacto de ser proferida por “um/a”, mas num outro diferente, cuja composição se aproxima de algo como uma “presença” mútua, não excludente, nem em relação ao masculino, nem em relação ao feminino.

Que, ao proferir-se, a “palavra” estremeça n/o “corpo”, sendo dois, sendo quase como um “Corpo Verde”, tal como o conceberam Maria Velho da Costa e Júlio Pomar.

© Imagem de entrada: Corpo Verde de Júlio Pomar

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