Remonta a 2010, entre 14 de Março e 31 de Maio, a performance de Marina Abramovic intitulada “A Artista está Presente”, decorrida no MoMA – Museum of Modern Art, em Nova Iorque; o efeito pressentido, no entanto, é bem mais duradouro.
Não assisti à performance de Marina Abramovic, aliás, nunca estive em Nova Iorque; mas sinto-me, sem dúvida, profundamente convocada pelo gesto e pelo sentido que presidem a “A Artista está Presente”. Há muito tempo, senão mesmo terei sempre pensado dessa forma, que julgo que uma exposição, um museu, a realidade, em suma, não dispõem de um ponto de vista total e desafectado, logo, as coordenadas de aproximação a uma exposição, a um museu, à realidade, em suma, são construídas e deverão ser explicitadas. O que se detecta muito bem, por exemplo, na asserção de Walter Benjamin, quando avisava que não tinha nada a dizer, mas sim a mostrar. Honestamente, uma perspectiva, o que da asserção de Walter Benjamin decorre, deve, não só dar a ver, como explicitar, sem necessariamente enumerar, os princípios que lhe subjazem: assim se formaria um entendimento mais límpido e alicerçado, porque radicado em sujeitos. Questiono-me sobre o que tanto amedronta na formação de constelações de sujeitos radicados, e encarnados, e concluo que o problema passa pelo poder nas suas múltiplas manifestações, palavra, poder, que já se pretende substituir por outras – dispositivos de vigilância, de controlo, que, no entanto, não condensam a mesma ressonância. Poder: exercício da força de forma global e total, que cria as desigualdades responsáveis por implementar a injustiça.
Neste entorno, a performance de Marina Abramovic decorrida no MoMA é extremamente significativa, porque insiste na potência do olhar, na potência do silêncio, na potência do encontro, na potência interior dos sujeitos. O que temos disponível para aceder ao interior de alguém? Temos o exterior, de que a pele é a fronteira evidente; mas a pele é porosa: à vista desarmada parece uma película relativamente uniforme, mas sondada microscopicamente demonstra o seu carácter de passador entre interior e exterior, tal como a respiração que nos faz participar, através do mesmo gesto pneumático, da inteira cúpula de ar que ronda a Terra. Assim, por um lado cada um/a de nós é sujeito radicado, por outro, pela pele e pela respiração abrimo-nos à vida comum. Para que de tal exista uma percepção fina será importante manter uma atenção insone, que até a dormir está de facto acordada; “A Artista está Presente” ajuda-nos a manter tal atenção insone: acorda a potência e desmobiliza o poder.
A potência do olhar – olhar e ver, olhar demoradamente, sem pressa, cair d/nas coisas com um olhar rasante; a potência do silêncio – emudecer, evitar a ruidosa manifestação da precipitação opinativa do já visto, abrir um espaço de inscrição dentro de nós para que o presente, que também é nome da dádiva, se declare; a potência do encontro – estancar a cadeia ininterrupta das equivalências niveladoras, evitar a liquidificação da singularidade em indistintas abstracções que sobrevoam a realidade, mas não a habitam; a potência interior dos sujeitos – deixar que aflorem à pele as emoções, permitir-se ser passador entre passadores. Claro que tudo isto assusta, e muito, o poder: tudo isto é o princípio activo da liberdade colectiva, desse devir-menor de que falava Gilles Deleuze, que contraria a maioridade preconizada por Immanuel Kant tendo como pano de fundo a razão Iluminista, que assenta, esta razão, na liberdade despojada de vectores históricos e de habitação propriamente ontológica.
O que acontece quando olho e vejo, mantenho um silêncio respeitoso, registo a alegria do encontro, dando, oferecendo, o meu interior e acedendo ao interior de um/a semelhante? Acontece o milagre da criação de um laço, de um vínculo. E atenção: não é um laço, um vínculo, que necessariamente se perpetue numa relação objectiva, ou seja, que se materialize; com a maior probabilidade, as pessoas que se cruzaram com Marina Abramovic durante a performance “A Artista está Presente” nunca mais viram, nem Marina Abramovic a elas. Mas, e aqui é que está a preciosidade, levaram consigo uma experiência, respirável e emotiva, todas sem distinção, incluindo Marina Abramovic.