“Júlio Pomar e Rui Chafes: Desenhar” é o nome da exposição que agregou obras dos dois artistas no Atelier-Museu Júlio Pomar entre 8 de Outubro de 2015 e 21 de Fevereiro de 2016, com curadoria de Sara Antónia Matos.
Para lá da descrição, e mesmo em fuga a uma possível rememoração, gostaria de vos dar conta de uma espécie de fumo ou perfume que exala de “Júlio Pomar e Rui Chafes: Desenhar”, envolvendo na sua especificidade única um possível pensamento, ou seja, aquele que será aqui vertido. Gostaria de começar pelo número que penso tutelar o encontro de “Júlio Pomar” e “Rui Chafes” nesta ocasião: o 4, explicitando, tanto o seu significado, como o dos números que o precedem. Assim: o 1 é a Estátua, princípio da Totalidade; o 2 é a Abertura, princípio da Fertilidade; o 3 é a Trindade, princípio da Religião; o 4 é a Dança, princípio da Alegria.
Portanto, não é minha intenção radiografar a exposição na sua totalidade, pois para que explicite o princípio numérico que lhe está subjacente – o 4, repito, bem como as consequências dele advindas, será necessário actuar seguindo um regime de intensidades; posto isto, concentro-me no piso inferior, que aliou “Étreinte” de Júlio Pomar e “Deine Hände / Nachtblume” de Rui Chafes, série de desenhos em papel e escultura aérea, respectivamente. “Étreinte” vem da década de 70 do século XX; “Deine Hände / Nachtblume”, embora tenha sido exposta pela primeira vez no ano de 2013 em dois locais distintos, Galerie Karin Sachs, Munich, e Galerie Ute Parduhn, Düsseldorf, estará relacionada com uma aparição que remonta a 1998.
Colocadas as premissas, cabe focar-me em “… Desenhar”, delineando os contributos para uma Ars Erotica. Será justo, entretanto, relembrar que no catálogo que acompanhou esta exposição, com textos de João Barrento, Maria João Mayer Branco e abertura de Sara Antónia Matos, se persiste também na dimensão erótica, seja a que atravessa a obra dos dois artistas (como vinca a curadora), seja a que alia Eros à arte, remontando à Grécia Antiga (como fixa João Barrento); e que a percepção de “Deine Hände / Nachtblume” é associada a uma dança (como faz Maria João Mayer Branco). Neste contexto, o pensamento que aqui pretendo propor encontra ressonâncias no entendimento de outras pessoas, o que de igual forma se harmoniza com um pressuposto que defendo: as obras de arte têm marcadores que impossibilitam uma desenfreada multiplicação de posturas subjectivas.
Ars Erotica pode, automaticamente, vislumbrar-se como uma questão relativa à manifestação exacta da sexualidade, adensada da fantasia, e sem dúvida as engloba, mas nelas não se esgota. Por outro lado, a expressão pode, eventualmente, evocar a meditação, investigação e distinção propostas por Michel Foucault, e que seriam vertidas para a sua história da sexualidade: a ars erotica do Oriente e mundo muçulmano versus a scientia sexualis do Ocidente.
Não pretendo, todavia, tornar “… Desenhar” numa encarnação foucaultiana da ars erotica como princípio do prazer, até porque, pelo que disse inicialmente, o princípio que pretendo demonstrar-vos estar ali activo é o da alegria. Pese embora, para que tal alegria se efective, e dance entre nós, existe algo na scientia sexualis ocidental, alicerçada num confessionalismo compulsivo e induzido, a que importa prestar atenção: a normalização e uniformização do discurso sobre a sexualidade, factores que em muito contribuem para impedir que a intimidade se estabeleça. E aqui está uma característica de “… Desenhar”: é íntima. O que parece paradoxal, neste sentido: os desenhos de Júlio Pomar apresentam corpos que ostensivamente se penetram; já Rui Chafes, a contra-ciclo em relação a um aparente movimento que se observa nas suas obras, essencialmente envelopadas, com estreitas frinchas a permitir que a elas acedamos, aqui como que desdobra, abrindo, a escultura. E é como se Júlio Pomar mostrasse o exterior e Rui Chafes o interior.
Outra característica de “… Desenhar” é o tempo-movimento, já que, embora “Étreinte” se fixe à parede, “Deine Hände / Nachtblume” propaga-se no espaço e exige um atravessamento: como se o exterior proposto por Júlio Pomar se intensificasse através do interior alastrado proposto por Rui Chafes. Assim também poderíamos conceber os corpos abraçados e penetrados, de um lado, e a energia que deles emanaria, para o outro lado. O tempo-movimento é aqui muito importante, sobretudo naquele sentido em que contraria a “morte” não raras vezes associada à arte escultórica, confirmando um desígnio que Rui Chafes já vincou várias vezes, e que algumas pessoas parece não quererem, ou poderem, ver e perceber: a erosão da matéria para que se intensifique um lastro. Tal erosão, onde algumas pessoas vêem apenas um acto de ilusionismo pela acoplação de um reduto palavroso, quer relacionado com a intitulação das obras, quer manifestado pelas reflexões que as possam rodear, é algo importante, e em “… Desenhar” particularmente activo.
Pelo exposto, parece-me poder concluir-se que “… Desenhar” foi uma exposição proveniente de 4 mãos, provando o seu heteroerotismo, duplamente e desdobrando-se: porque juntou dois diferentes, estranhos, seja do ponto de vista das práticas artísticas, seja daquele em que as duas obras se intensificam, embora sem se confundirem, porque ambas dotadas dos respectivos limites, mas em que, qual qualidade alquímica, se fazem mutuamente explodir. Assim, foi dança, princípio da alegria: uma Ars Erotica efectiva, tão necessária à sociedade quanto sistematicamente vedada por forças tristes e que murcham em lábios cansados e velhos, começa aqui. E segue, depois.