Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Luísa Sobral

Nome bem afirmado e (re)conhecido na cena musical, Luísa Sobral merece sempre reforço de palavras pela carreira sólida e consistente que tem vindo a construir, nota a nota, acorde a acorde. De voz doce que pode parecer-lhe frágil, desengane-se, pois na voz de Luísa não há afinação que lhe fuja e há uma maturidade, e conhecimento, que lhe são inegáveis.

Luísa Sobral conquista a nossa atenção em 2011 com o seu primeiro álbum de originais – “The Cherry On My Cake” e chega-nos a 2021 com cinco bem sucedidos álbuns editados e um sexto prometido – (entre outros projectos) – para assinalar dez anos de uma carreira repleta de merecidos elogios da crítica especializada, cá e além fronteiras. Luísa Sobral não vive sem as emoções, ao vivo, de um palco – seja por cá ou, e.g., numa Austrália onde já levou as suas sonoridades – bem acompanhada pelos seus pares e com a emoção imediata, física e emocional, do seu público. O tempo, escasso numa casa bem preenchida, não impediu que a criatividade lhe fugisse na totalidade. Direcionou-a, sim, para outros projectos que era compatíveis com o novo quotidiano de uma alma criativa com um novo tempo, sem tempo.
Luísa Sobral, que já encantou no mítico programa de Jools Holland, é um jazz e tanto mais só dela, que é independente de rótulos e partilhou, connosco, o que foram os seus últimos 12 meses, de um ano tão estranhamente diferente.

Se te pedisse para escolher uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(LS):
Creio que seria, talvez, um acorde diminuto. Há alguma beleza no diminuto, não fica ali… Tem de ir a algum lado. (Risos). Talvez sinta que sejam isso, estes últimos 12 meses. Ou seja, houve coisas bonitas, mas no fundo queria-se ir a outro lado.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(LS):
Acabei por conseguir concretizar alguns projectos que gostava de ter feito antes e não tinha conseguido exactamente por isso, por uma questão de tempo. Dediquei-me ao podcast que já estava há algum tempo na minha cabeça e esse foi talvez o maior salto destes últimos tempos. Dizia ao meus colegas compositores “Estou a pensar fazer isto, depois vou contactar-te para te entrevistar”, mas era algo que estava ali adormecido. Além do podcast, escrevi um livro para crianças e trabalhei num disco “pequenino” que vai sair nos próximos tempos. Assim, acabei por fazer algumas coisas que não eram tanto a minha música, de “discos de adulto”.
Creio que não tive muita disponibilidade mental, na verdade, nem disponibilidade física, para me dedicar à composição porque estava com três crianças em casa. Fiz algumas coisas para outros, mas para mim não. O meu estado de espírito era um pouco estranho e não quis explorar isso. Estávamos todos com algumas ansiedades e medos; nunca fui uma pessoa ansiosa e não estava com muita vontade de explorar esse lado. Quando entramos na música, em alguma coisa, podemos ir muito fundo e não tinha vontade de ir por esse caminho, preferi nem entrar. Mas foi isso, tive tempo para explorar várias outras coisas que também me apaixonam.

Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activa?
(LS):
Não sou grande fã dos concertos em streaming. Todavia, a verdade é que nós também temos que nos ir adaptando e então fomos fazendo. Verdade seja dita, não sou muito fã de computadores, telefones, começa logo por aí. Não estou habituada, não faço os stories e estar a falar a olhar para uma câmara a dizer “Olá, então pessoal?!”, acho-me sempre muito estranha. Bom, talvez esteja um pouco fora da minha geração.
Para mim, uma das melhores coisas dos concertos é estar com os músicos que tocam comigo e nem sempre isso foi possível. A outra é o público, a sua reacção, o seu calor e entusiasmo. É uma coisa recíproca, que vamos dando e recebendo, e quando de repente nós damos, e damos, e damos, e não recebemos… É difícil para estimular. Não é por, de repente, receber mensagens a dizer “Estou a adorar!” que há esse calor: não há! É uma coisa física. É como enviarmos um beijo a alguém com emojis do coração; não sinto esse beijo! É querido alguém enviar-me um beijo, mas não o sinto. Não está na minha bochecha (risos). Por tal, para mim, é um pouco a mesma coisa, mas a verdade é que tivemos de nos reinventar.
Quanto ao activa, não precisava ou precisei dos concertos streaming para me sentir activa. Nos últimos meses era a última coisa que precisava, estava demasiado activa, com todas as coisas da casa e das crianças.

Estás a desenvolver músicas ou produções para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(LS):
Estou a acabar de produzir um disco, que se encontra agora a ser misturado – uma parte bastante importante da produção – mas está quase terminado. Estou, também, a fazer a segunda temporada do meu podcast “O Avesso da Canção” e a acabar de gravar para o tal “disco pequenino” que vou lançar, que é uma coisa bem especial, e já ando a compor para o meu próximo disco. Está a acontecer muita coisa, ao mesmo tempo!

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo?
(LS):
É um bocadinho difícil e quando aparece uma coisa dizemos logo que sim, mesmo que seja complicada a gestão. E.g., um concerto foi reagendado para o dia de anos da minha filha e pensei “Ok, tem de ser porque eu também tenho que trabalhar!”; então, vamos lá! Concerto e depois faço a festa de anos do dia no dia seguinte. Quando há pouco temos de aproveitar e dar a volta à situação, fazer as coisas de uma outra forma, mas aceitar logo.
Depois, acho que também há a questão da expectativa. No início, pensava muito nas coisas que perdia – “Nesta altura estaria não sei aonde a dar um concerto… estaria em França, agora estaria em Itália…” – Depois deixei de fazer isso, é masoquismo pensar onde é que estaria se isto não tivesse acontecido; não vale a pena. Estou aqui e pronto! Agora lido bem com isto porque acredito sempre que são mais reagendamentos e não são cancelamentos; que há-de acontecer noutra altura e que até pode ser interessante. Porque há-de acontecer quando já tiver estas canções mais compostas e até vou poder mostrar novas canções; é tentar mudar o ângulo e não ser sempre tão pessimista.

Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(LS):
Creio que no início fizemos aqueles streamings, quando as pessoas começaram a ficar em casa, para dar algum alento; estava realmente a ser um momento de muita ansiedade, as pessoas estavam com medo. Então, foi bonito fazermos uns concertos para as pessoas estarem entretidas, não estarem só a pensar no momento, a ver o telejornal o dia inteiro, a ver números e números de mortos. Por aí, foi importante.
A partir daí, senti que foi perigoso. Aconteceu que vários artistas que se alimentam muito das reacções do público começaram a não ter isso e, quase como uma droga, começaram a “ressacar” e, consequentemente, começaram a fazer directos para tentar sentir esse calor, o que levou a que as pessoas tivessem acesso aos concertos, à música em directo, sempre grátis. Banalizou-se, para mim, banalizou-se imenso “Ah! Agora está o não sei quantos a fazer o directo e também está o outro. Quem é que eu vou ver?!”. De repente, havia ali uma oferta grátis de conteúdo que não deve ser grátis, porque isto é a nossa arte, não a devemos dar desta forma. Ou seja, houve ali uma péssima gestão, dos artistas em geral, do conteúdo; e a razão acho que foi a de ressaca de público, dessa falta de sentir do público de perto. Todavia, acho que vamos, calmamente, voltando ao normal e é importante o público perceber que os concertos têm um preço, que é a nossa vida, é a nossa profissão.
O público vai ver concertos grátis, a uma feira ou semelhante, mas sabe que esses concertos não são grátis para o artista, esses concertos são comprados pela Câmara Municipal, ou outra entidade, sabem que há alguém a pagar ao artista. Na maior parte dos streamings directos não havia ninguém a pagar ao artista, sem ser aqueles que depois tinham uma marca e isso até percebo.
Um músico decidir fazer, todos os dias, directos de sua casa com música para outros é complicado. Temos de pensar como um todo e temos de pensar em todos, no grupo dos músicos em geral, não pensar só em nós. Isto foi um pouco negativo, mas acredito que vamos sair disto e que vai voltar tudo ao normal. Espero!

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de músico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(LS):
Na criatividade nada vai mudar. A partir do momento em que se comece a viver de uma forma normal, a criatividade vai voltar porque nós inspiramos-nos no mundo, precisamos de ver o mundo a acontecer e creio que isso vai começar a ocorrer. Na produção, também não acho que vá haver grande diferença.
O que acredito que vai mudar são os concertos. Agora, durante um tempo, ainda vamos ter salas a metade; depois, se calhar, vai mudar a parte do público se juntar no fim dos concertos para conhecer o artista, ou o que seja, algo que acontecia muito por cá, de estarmos com o público e tirarmos as fotografias. Isso, provalvelmente, durante ainda algum tempo não vai ser assim e pode ser que deixe algumas sequelas, e que o público se desabitue de alguma forma. Por fim, e como o vírus ainda vai existir durante algum tempo, acredito que nos concertos vá haver, cada vez mais, a opção streaming, i.e., o público pode ir ao concerto ou assistir a partir de sua casa. Penso que vai ter de ser assim, o que nos vai deixar a nós, músicos, numa posição um pouco delicada e que vamos ter que saber geri-la. Voltamos à questão atrás, a importância de não oferecer conteúdo grátis online porque tendo o conteúdo grátis, o público, pode não ir ao sítio e optar por ver só online. Temos de saber gerir isto muito bem, mas é uma questão de nos unirmos enquanto músicos e não tomarmos decisões só por nós.

Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto músico? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(LS):
Foi super desafiante, mas mais que tudo pelo facto de estar sempre com os meus filhos, em casa, durante todo este tempo, o que fez com que não tivesse tempo para trabalhar, isso foi difícil. Por outro lado, fizemos coisas bonitas em família, fomos para uma quinta no Alentejo e isso foi muito positivo; acabámos por fazer coisas que não teríamos feito de outra forma. Ou seja, foi desafiante por isso, pela falta de tempo.
Porém, como já disse antes, também consegui fazer projectos que estavam pendentes há algum tempo e foi igualmente interessante. Provavelmente, não teria feito nenhuma destas coisas, que fiz, se não tivesse parado, então foi bom. Não sei se mudou grande coisa. Acredito que tudo vai voltar a ser, mais ou menos, como era dantes porque está muita gente com vontade que assim o seja. Faz-me confusão este pequeno medo de estarmos uns com os outros e fechados num sítio. Apetece-me abraçar os meus músicos. Esse contacto físico faz-me falta e… confusão porque, de repente, não sabemos o que é que a pessoa do outro lado pensa, mesmo que seja um amigo nosso: “Será que ele está à vontade por eu estar aqui, será que não?!”. Tudo isso mexe um pouco connosco, porque sentimos que estamos inseguros em relação a pessoas que nós conhecemos muito bem e é estranha essa sensação, cria algumas barreiras, mas acredito que, lentamente, isso vá desaparecer. •

+ Luísa Sobral
© Fotografia: Luísa Sobral, MDPhotography.

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