Adolfo Morais Macedo ou Adolfo Luxúria Canibal: Aqui, não há espaço para a dúvida. Eliminando o Direito do Ambiente para outras semi-prosas, cingimos-nos à música e concluímos que o seu extenso cardápio de trabalhos editados nos deixa incomodados e quase perguntamos se “Isto é Real?“. Incomodados pela certeza que, sem problemas em assumir, ainda não conseguimos ler nem ouvir tudo de fio a pavio, a preceito, porque sempre que agarramos num trabalho saído do deste génio criativo ficamos, sempre, inevitavelmente, presos – durante um tempo indeterminado – ao mesmo.
Com o dom para a palavra sempre acompanhado daquela voz inconfundível que continua dona de um travo negro viciante e de música que nos acelera o ritmo interno, Adolfo Luxúria Canibal é um dos músicos mais carismáticos da cena musical, pela sua inteligência criativa, pela sua postura, pela sua carreira que se reinventa a cada novo trabalho discográfico; seja pelos míticos Mão Morta, seja pelos “Estilhaços” simples ou cinemáticos, seja pelo surpreendente “Goela Hiante” com Marta Abreu, seja pelos… Seja por tudo o que existe “No rasto dos duendes eléctricos”. Não tentar trazer Adolfo Luxúria Canibal a esta série de artigos sobre o futuro da cena musical seria, para nós, um absurdo desmedido. A ousadia da tentativa trouxe-nos esta reflexão de um músico intenso com uma bagagem cheia de trabalhos para levar a palco.
Se te pedisse para escolheres uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(ALC): Baixa. Uma nota baixa, uma frequência baixa, um valor baixo. Foram 12 meses de muito baixa pressão…
Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(ALC): Estes 15 meses não foram idênticos, longe disso. Os primeiros três meses foram de descoberta de um novo quotidiano e houve disposição para o reinventar, fazer coisas novas, encontrar novos equilíbrios, fruir o novo tempo reencontrado. Depois foram meses de expectativas, de espera e adaptação a um novo real sempre mutante, sem previsões, sem certezas, mas ainda excitantes pela descoberta do que poderia ser um novo normal. E finalmente os últimos cinco meses foram meses traumáticos, de claustrofobia, decepção, enfado e falta de vontade de fazer seja o que for.
Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activo?
(ALC): São horríveis. Se no início suscitaram curiosidade e foram galvanizantes por tudo ser novo, rapidamente mostraram os seus limites e a falta de empatia que os rodeia. Não impede que não possam ser encontrados “objectos artísticos” novos para streaming, mas os concertos, como tal, como os conhecemos dos palcos, não têm interesse nenhum.
Estás a desenvolver músicas/produções ou programação para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(ALC): Tenho tanta coisa em suspenso vinda de 2019 que o difícil é conciliar tudo, o que vinha de trás com o que entretanto se fez e com o que está na calha… Desde o último disco de Mão Morta, “No Fim Era o Frio”, que praticamente só foi mostrado no Porto e em Lisboa, ficando a digressão nacional adiada à espera de melhor ocasião, até à apresentação do filme-concerto “A Casa na Praça Trubnaia”, que também vem de 2019, e que ainda assim tem-se adaptado e aproveitado bem as oportunidades trazidos pelos diversos desconfinamentos, até ao disco “Goela Hiante”, fruto dos primeiros meses da pandemia mas cuja apresentação ficou em suspenso por força do último confinamento, até a um espectáculo de comunidade, “A Noiva de Giela”, que há-de estrear, se tudo correr como planeado, em Julho, ou até ao novo filme-concerto, “Rapsódia Satânica”, com estreia programada para Outubro, sem esquecer o retomar de Mécanosphère para uma aparição em Estugarda em Setembro ou uma ida de Mão Morta a Oviedo em Agosto… Esperemos só que não haja mais motivos para novas medidas de confinamento ou de restrição a espectáculos!
Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo?
(ALC): Trabalha-se à vista. Planeia-se como se tudo estivesse normal e depois trabalha-se consoante as circunstâncias, sempre com o máximo de flexibilidade para nos podermos adaptar a todas as situações.
Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(ALC): Se a paragem forçada trouxe alguma coisa, nesse contexto, foi mesmo o fim da profissão ou das profissões ligadas à música. Para o público foi irrelevante, ou melhor, até se desabituou de ir a concertos…
Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de músico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(ALC): Como tudo o resto, também a indústria musical e a indústria do espectáculo hão-de reencontrar o seu espaço e a sua rotina, quando tudo isto passar. Serão o que sempre foram, com coisas boas e coisas más, com pessoas interessantes e pessoas para esquecer, com músicas empolgantes e músicas para encher chouriços e ganhar uns cobres…
Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto músico? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(ALC): Para falar verdade, não me posso queixar verdadeiramente, o ano até correu muito bem se retirarmos da equação os últimos meses. Houve foi uma grande adaptação a um outro tipo de espectáculos, com público mais reduzido, com uma ambiência mais abstracta e menos física, mas foi um desafio e acho que até foi arrebatador e não senti falta de nada. Os últimos meses é que foram completamente estéreis… •