Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Marta Ren

Marta Ren é nome que se conhece, reconhece e se segue bem de perto, é força de palco a que não se resiste. É voz que se destaca, há muito, na música nacional e que nos deixa inevitavelmente presos a uma bem quente soul-funk. Veterana dos palcos, Marta Ren já assegurou o seu lugar na cena musical por cá e além fronteiras.

De timbre forte e cativante capacidade vocal, com um estilo retro soulso groovy, Marta Ren foi fundadora dos Sloppy Joe, ida banda de culto portuense que explorou, de forma única, os territórios de uma sonora Jamaica, fez ainda parte dos Bombazines e do colectivo Movimento, antes de se lançar, em definitivo, numa carreira em nome próprio – sem esquecer as várias colaborações no universo do Hip Hop e tendo dado dezenas de concertos com os Funkalicious, banda que liderou e que se dedicava à recuperação dos grandes clássicos Funk dos 1960 e 1970. Hoje, – sempre bem acompanhada, em palco, por colegas músicos e com um estilo que nos vicia -, Marta dedica-se de corpo e alma à sua grande paixão que nos transporta para todo um universo que bebe nos grandes géneros da música negra, da soul americana, onde a sua voz se torna um cartão de visita, sempre com música de caráter determinado e consistente. É com Marta Ren que hoje olhamos para as memórias recentes, de quem tem na música uma carreira profissional.

Se te pedisse para escolheres uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(MR): Tive várias, começou pelo barulho das obras de um prédio em frente que começavam às 8h00 e terminava às 18h00, em que não havia nenhuma parte do apartamento que não se ouvisse, durante cerca de cinco meses, fui tentando equilibrar com a frequência 963HZ para me activar a glândula pineal e a 528HZ do amor, quando pensava no meu trabalho só ouvia um feedback agudo, em setembro tive a sorte de me poder mudar para o campo e a partir daí foram ovelhas, badalos de vacas, muitos pássaros e meditação guiada para conseguir adormecer mais tranquila.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(MR): No primeiros seis meses foi difícil, foquei-me em fazer exercício fisico diário e ter uma alimentação saudável para lidar com o choque, depois passei para o outro extremo, só comi porcaria e nada de exercício. A ansiedade ocupou o espaço todo. Tentei escrever sobre o que estava a sentir, mas tive muita dificuldade e não queria escrever musicas com a ansiedade como base. Em janeiro voltei a focar e a partir daí sim, consegui começar a dar andamento a projectos que tinha na gaveta e voltar a escrever, tive de voltar a disciplinar-me para fazer exercício, ter despertador para dormir cedo e acordar cedo, fazer uma alimentação saudável, deixar de viver na minha cabeça em loop e passar à acção. Embora tenha passado mais de 15 anos de carreira em que o futuro sempre foi incerto, este retrocesso trouxe-me um cansaço gigante, em que esta incerteza constante já não é algo que quero para mim, com toda a responsabilidade que tenho em mãos, e isso fez-me não conseguir criar nada durante meses a fio e ter de gerir um sentimento grande de culpa por isso. Felizmente, agora escrevo noutro estado de alma, com a esperança a espreitar e mais tranquilidade psíquica.

Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activa?
(MR): Nunca encarei muito bem os concertos em streaming, foi um bem necessário e uma generosidade dos artistas para com o publico, pois foi uma bela forma de aliviar a psique, ao mesmo tempo, o streaming nunca vai substituir a experiência de um concerto ao vivo, a energia que se troca num concerto não se consegue replicar virtualmente. O meu motor é estar num palco com pessoas a assistir, mesmo que sentadas e de máscara.

Estás a desenvolver músicas ou produções para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(MR): Sim, com alguma dificuldade porque todo o dinheiro que tinha poupado para poder concluir ou começar os projectos, foi-se. Sem dinheiro, não se consegue fazer muito, pelo menos com a qualidade que gosto de trabalhar e recuso-me a fazer algo menos bom, para isso, prefiro estar quietinha. Mas posso adiantar que vem aí um disco muito especial, gravado ao vivo e um novo que já está com as baínhas todas alinhavadas.

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo? 
(MR): Organiza-se de semana para semana, a parte dos concertos e ensaios. A vida é vivida como há 20 anos, em Portugal os concertos e tours raramente são organizados com muita antecedência. Tinha alguns concertos marcados no resto da europa que já foram reagendados umas quatro vezes e ainda não aconteceram, estão adiados para novembro, agora resta-me fazer figas para que aconteçam. Consegui fazer um concerto fora de Portugal em janeiro, mal entrámos em confinamento aqui, no dia seguinte, foi muito bom sair e fazer um concerto, ao mesmo tempo, lidar com a ansiedade de nove testes de Covid e rezar para que toda a gente estivesse negativa… Enfim… O “novo e espetacular normal”.

Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(MR): Esta paragem não humanizou o mundo. Não ficou tudo bem, muito pelo contrário, discurso de ódio, todo o género de guerras e lodo veio à tona, com muita rapidez e facilidade. Infelizmente não me parece que as artes sejam vistas como profissão, pelo menos em Portugal, se assim fosse, um ano e tal depois, já teríamos legislação e apoio para trabalhadores intermitentes, isso seria uma prova de que estavam a ser respeitados, reconhecidos e valorizados como profissionais do nosso sector.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de músico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(MR): Vejo uma luz ténue ao fundo… A nossa rotina sempre foi a mesma, trabalhar para não sobreviver e poder viver.A frustração do retrocesso que esta situação nos trouxe, não me deixa ser produtiva, criativa, com toda a incerteza se todos os concertos que tenho se vão realizar ou não e em que moldes. Depois de investir a minha energia há 26 anos nesta profissão, a palavra resiliência não é uma novidade para mim e por isso já me irrita, porque começou a ser indevidamente usada, mas o futuro continuará a passar por aí, pela resiliência, resistência e união. Sobre rotinas, é como se tivesses uma casa e dantes a tua preocupação era pagar as despesas e ainda veres se conseguias com o tempo ir fazendo obras para a melhorar, mas essa casa foi bombardeada e agora tens de a construir de raíz sem quase nada que te possa ajudar a fazê-lo.

Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto músico? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho? 
(MR): Embora tenha lançado um single “22:22”, tenha feito alguns concertos, o percurso não foi muito longo. Troquei muitas mensagens com os meus amigos e colegas de trabalho, preocupa-me a saúde mental de quem nunca tinha levado um baque profundo e este ano foi assim para eles. Na perspectiva de trabalho não mudou grande coisa. No início disto tudo, tinha a esperança que fosse uma boa oportunidade para evoluirmos como pessoas e músicos e pudéssemos finalmente ter uma nova legislação que fosse justa para toda a gente de todas as áreas do sector cultural, sem esmolas. •

+ Marta Ren
© Fotografia: DR.

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