“Ficcionar o Museu” / CIAJG

No próximo dia 02 de outubro, o Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG) inaugura um conjunto de cinco novas exposições que têm como fio condutor a dimensão política e ética da imaginação. Estas mostras juntam-se a outras exposições em continuidade e integram este novo ciclo que faz parte do programa artístico “Nas margens da ficção”, iniciado em abril deste ano.

“Ficcionar o museu” é o mote do presente ciclo de exposições do CIAJG, o qual encontra um contexto próprio na articulação com o trabalho e as coleções de José de Guimarães. Compostas por objetos provenientes de diferentes tradições, culturas e geografias, as coleções do CIAJG dão substrato crítico e discursivo a um programa que investiga a “ficção”. Segundo Marta Mestre, curadora geral do CIAJG, “As novas exposições são um convite a refletir sobre os usos e potências políticas da imaginação. Trata-se de pensar a ficção não como oposição ao real, mas como uma estratégia realista tendo em vista uma reescrita do museu. No contexto de um mundo atravessado por diferentes tipos de crise, onde os objetos disputam representações e significados, importa entender as estratégias artísticas a partir do museu”.

As novas exposições e diálogos com as coleções de José de Guimarães ocupam todo o espaço do CIAJG. Priscila Fernandes (Escola de Lazer), Virgínia Mota (Diário Atmosférico) e Ana Vaz (Amazing Fantasy), José de Guimarães (Devir-Desenho-Objeto) e Pedro Henriques (Meio Olho, Cara Longa) convidam, através das suas exposições, a refletir sobre o gasto improdutivo e a imaginação enquanto estratégias de inversão da moral económica e política dominante nas nossas sociedades. A exposição Complexo Colosso, iniciada em abril de 2021 tem um segundo momento de ativação com os artistas Diego VitesCarme Nogueira, a dupla Iratxe Jaio e Klaas van Gorkum e o coletivo Pizz Buin.

© Priscila Fernandes, Escola de Lazer, Never Touch the Ground, Video still, Nas margens da ficção // Priscila-Fernandes, 2020. With kind support of CBK Rotterdam and MAAT Museum

Escola de Lazer apresenta pela primeira vez em Portugal um importante corpo de trabalho da artista Priscila Fernandes (n. 1981) composto por três séries recentes – “Never Touch the Ground” (2020), “Labour Series” (2020) e “Free.To do Whatever We” (2018). A exposição consolida uma perspectiva ampla sobre o trabalho da artista, a qual tem vindo a afirmar uma reflexão singular sobre a transformação da palavra “lazer” ao longo dos tempos, especialmente no séc. XX, no contexto do projeto moderno-capitalista ocidental. Diante da atual algoritmização da vida, em que a cada instante é desenvolvida uma nova “app” para maximizar e monitorar a nossa crescente produtividade, qual é o espaço ocupado pelo “lazer” no mundo contemporâneo? são questões que a exposição Escola de Lazer coloca ao público.

Esta que é a mais relevante exposição da artista até hoje em Portugal ocupa três salas do museu. À semelhança de um “passeio” peripatético, a exposição Escola de Lazer convida o público a confrontar-se com diferentes pontos de vista sobre a ideia de tempo livre e aborda o paradoxo do seu título, em que os sentidos da “disciplina” e da “indisciplina” se cruzam. Cada uma das salas explora diferentes “pedagogias” sobre o lazer: uma sala onde se quebram correntes (numa espécie de “desafio” de libertação); outra onde se exercitam gestos artísticos com patins de rodas e outras diversões; e finalmente uma ficção onde uma apresentadora de TV tenta provar a relação entre o desenvolvimento do lazer e a emergência da arte abstrata.

Atualmente, Priscila Fernandes é uma das artistas portuguesas de maior destaque. Com um extenso percurso nacional e internacional, a viver há mais de 15 anos na Holanda, a artista foi recentemente galardoada com o importante prémio holandês Brutus Art Prize (AVL Mundo, Roterdão, em 2019). Priscila Fernandes é licenciada em Pintura no National College of Art and Design (Dublin) e com Mestrado realizado em Belas Artes no Piet Zwart Institute (Roterdão). Atualmente coordena o departamento do bacharelado em Belas Artes da ArtEZUniversity of the Arts (Arnhem). Foi galardoada com importantes prémios, entre os quais o Prémio EDP Novos Artistas em 2011 e o Brutus Award (AVL Mundo, Rotterdam) em 2019, e realizou exposições nacionais e internacionais das quais se podem destacar participações na Bienal de São Paulo, no Museu de Serralves (Porto), vários trabalhos expostos em museus e instituições de cidades como Barcelona, Madrid, Reykjavik, Oslo, Lisboa e Porto.​​

Virgínia Mota, que vive entre Portugal e o Brasil desde 2009, apresenta, por sua vez, Diário Atmosférico, uma instalação de 25 cadernos que são expostos e acompanhados de uma peça sonora. À semelhança dos “livros de artista”, dispostos sobre suportes de leitura, o Diário Atmosférico convida a uma leitura de imagens e relações entre imagens. Cada página pintada sugere formas que suscitam livremente a imaginação e o devaneio e, à semelhança de um ritual, explora novos caminhos da perceção. O conjunto, que foi realizado entre 2020 e 2021, num período em que a pandemia agudizou o nosso estado de alerta sobre o mundo, foi partilhado pela artista na sua conta de Instagram. No museu, a experiência das imagens toma a forma de uma instalação imersiva onde poderemos ver os cadernos pintados da autoria de Virgínia Mota sobre um conjunto de prateleiras, acentuando um “continuum” entre o tempo da exposição e o da experiência. 

Artista, pedagoga e escritora, Virgínia Mota (1976) é docente na Faculdade de Arquitectura, Arte e Design, Universidade do Minho.

© Maternidades, Coleção de José de Guimarães, Nas margens da ficção // Alexandre Delmar

Amazing Fantasy, de Ana Vaz, é uma instalação de um único vídeo, um registo de uma criança que contempla um brinquedo que desafia a gravidade, num jogo de levitação que se torna imediatamente a possibilidade de magia; ou uma tradução de um desejo irreprimível de domínio.

Ana Vaz (Brasília, 1986) combina etnografia e especulação nos seus filmes, escritos e vídeo-instalações e aborda, de forma crítica, as relações entre o mito e a história colonial através de uma cosmologia de signos, referências e perspetivas, questionando o cinema enquanto arte do (in)visível e enquanto instrumento capaz de desumanizar o humano, expandindo as suas conexões e devires com outras formas de vida. Artista e realizadora tem formação na Royal Melbourne Institute of Technology e na Le Fresnoy – Studio National des Arts Contemporains. Ana Vaz é também membro fundadora do coletivo “Coyote” juntamente com Tristan Bera, Nuno da Luz, Elida Hoëg e Clémence Seurat, um grupo de trabalho multidisciplinar que atua nos campos da ecologia, antropologia, etnologia e ciência política.

Meio olho, cara longa, é o título da intervenção de Pedro Henriques (Porto, 1985) na sala das máscaras africanas que são expostas em permanência no CIAJG. No seguimento da anterior exposição nessa sala, da cineasta e militante anti-colonial Sarah Maldoror, o convite do CIAJG a Pedro Henriques tem como objetivo operar na percepção que temos sobre os objetos etnográficos oriundos maioritariamente provenientes de África Subsariana. As esculturas de Pedro Henriques encontram sentidos inesperados num jogo de tensões, escalas e texturas com as máscaras africanas, pondo em evidência a sofisticação dos artistas africanos nas soluções decorativas e plásticas encontradas. Autoportantes como entidades sobrenaturais ou planares como pintura aberta contra a parede, os trabalhos do artista convocam sentidos ambíguos e não-verbais.
Com formação em Pintura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Pedro Henriques tem vindo a expor, em Portugal e no exterior, um projeto artístico de grande maturidade e rigor formal composto por escultura, desenho e fotografia. Finalista do Prémio EDP Novos Artistas 2013, Henriques foi vencedor do Prémio Novo Banco Revelação 2014.

Voltando-nos para a íntima relação de José de Guimarães (Guimarães, 1939) com o desenho – arte tantas vezes considerada momento de intervalo ou de pausa na sua produção artística, sendo, ao invés, um exercício intenso de transformação da realidade, cobrindo um período de cinquenta anos de trabalho – poderemos conhecer a nova mostra Devir-Desenho-Objeto explorando uma seleção de desenhos, entre os quais homens-animais, seres-frutos estranhos, duendes-dóceis figuras – em diálogo com o mote do programa artístico: a ficção. Esta seleção é apenas uma ínfima parcela dessa extensa atividade, estabelecendo aqui diálogos com obras da coleção de arte africana, pré-colombiana e antiga chinesa, e apontando para um processo de devir: homens-animais, rostos-máscara, seres-frutos estranhos, serpentes-dóceis figuras… É a ideia de metamorfose que se persegue ou, como refere o poeta Carlos Poças Falcão: “Tudo desenha tudo. Tudo é desenhado por tudo. Há uma implicação e correspondência de cada coisa em cada coisa, numa relação que se projecta até ao infinito, no grande desenho universal”.

Neste ciclo damos continuidade a “Pasado”, do artista Rodrigo Hernández, e à coletiva Complexo Colosso, organizada pelo curador Ángel Calvo Ulloa, contando esta com novas participações que ampliam as especulações sobre o “homem de pedra”: Carme NogueiraDiego Vites, a dupla Iratxe Jaio & Klaas van Gorkum e o coletivo Pizz Buin. Num processo de contínua remontagem, várias salas do CIAJG consubstanciam novos prismas sobre as coleções, em especial, a exposição “Ritual das serpentes: as maternidades na coleção de José de Guimarães”.

“Pasado”, de Rodrigo Hernández é uma instalação melancólica e íntima do artista mexicano inspirada pela coleção pré-colombiana do CIAJG. No seguimento de um estudo das coleções do CIAJG, o artista realizou uma montagem “indisciplinada” de objetos, artefactos e obras de arte e objetos etnográficos que evocam o universo surrealista, mas também o projeto colonial-moderno nas Américas, apontando sentidos para questões como o significado do passado, como o sentimos, que ficções e verdades estão nele contidas, na idealização do próprio artista.

A exposição “Ritual das serpentes: as maternidades na coleção de José de Guimarães” tem como núcleo central um conjunto de cerca de 30 esculturas africanas representando o tema da “maternidade”, pertencentes à coleção pessoal de José de Guimarães. Deste conjunto destacam-se, entre outras, as Gwandusu, esculturas produzidas pelos Bamana, considerados um dos maiores grupos linguísticos do Mali, e identificadas como “rainhas”, pelos europeus pelos seus atributos de força, paixão e convicção, bem como a capacidade para grandes realizações. A exposição conta ainda com trabalhos do artista, um conjunto de desenhos florais de Maria Amélia Coutinho, mãe do artista, e com Vanguarda Viperina, registo da performance do artista brasileiro Tunga. Interligando esta exposição destaca-se o tema da serpente, presente na obra do artista José de Guimarães.

No que respeita à exposição Complexo Colosso, organizada pelo curador-convidado Ángel Calvo Ulloa, a mostra apresentada neste ciclo dá continuidade à especulação sobre a insólita estátua colossal que se encontra numa das entradas da cidade de Guimarães. “Complexo Colosso também aponta uma complexidade que vai além do debate sobre a origem do homem de pedra, desembocando em aspetos políticos e sociais que revelam uma série de problemáticas históricas das quais o Colosso é apenas a ponta”, partilha Ángel Calvo Ulloa. A nomes como Pedro G. RomeroTaxio ArdanazCarla Filipe ou NEG: Nova Escultura Galega, juntam-se quatro novos artistas.

Diego Vites (Galiza, 1986) que expõe Colosso de Pedralva (Monumentos incómodos) (2021), trabalho resultante da conexão entre pintura, escultura, performance e documentário, com referências recorrentes à história da arte e ao amplo espectro das manifestações populares, aqui refletidas na pesquisa da tradição das Festas Gualterianas de Guimarães através do convite do CIAJG; Carme Nogueira (Vigo, 1970) expõe A propósito de Alvão. Bancada, 2016 (bancada de madeira), A propósito de Alvão. Desenhos preparatorios I e II, 2016 (sobreposição de 2 desenhos a lápis sobre papel), Monumentos deslocados, 2016 (conjunto de 8 fotografias), A propósito de Alvão. Mulheres, 2016 (13 azulejos pintados e organizados em 4 conjuntos) e uma série de vídeos; a dupla Iratxe Jaio (Espanha, 1976) e Klaas van Gorkum (Holanda, 1975), dedicado a explorar o significado social de objetos e documentos existentes, por meio da sua apropriação e reprodução num contexto distinto, comparado à arqueologia experimental, expõe um vídeo e o trabalho Nire ama Roman hil da (Mi madre ha muerto en Roma), 2015, constituído por uma seleção de 116 desenhos sobre papel; e o coletivo Pizz Buin (formado em 2005 nas Caldas da Rainha por Rosa BaptistaIrene LoureiroVanda Madureira e Sara Santos) apresenta uma proposta sonora intitulada “Hrönir ou Krönir”, tomando como ponto de partida as diversas questões que abordam os diferentes trabalhos apresentados nesta exposição.

© Priscila Fernandes, Escola de Lazer Inflatables POP C Print, 228×175 cm, Nas margens da ficção Ⓒ Priscila Fernandes, 2020, With the kind support of Prins Bernhard Cultuurfonds

Recordamos que as coleções do CIAJG – arte africana, arte pré-colombiana e arte arqueológica chinesa – compõem um acervo fruto da sensibilidade do artista José de Guimarães ao património popular, sagrado e arqueológico de diversas partes do mundo. No total, são 1128 objetos adquiridos pelo artista na Europa, dos anos 80 em diante, e confiados em comodato ao CIAJG, que assume como missão a investigação das suas coleções.

A inauguração das novas exposições tem entrada gratuita às 15h do próximo dia 2 de outubro e será seguida, às 16h, da apresentação da peça sonora “Hrönir ou Krönir”, pelo coletivo Pizz Buin, permanecendo o CIAJG de portas abertas para visita até às 21h deste dia. Na véspera da inauguração, haverá lugar para uma visita especial com os artistas e com a curadora geral do CIAJG, reservada ao público que adquirir bilhete para o concerto de La Dame Blanche, do ciclo Terra. Este programa inaugural estende-se aos domingos seguintes, 3 e 10 de outubro, às 11h00, com uma visita orientada com Mariana Oliveira, organizada pela Educação e Mediação Cultural d’A Oficina, e uma visita-conversa com Marta Mestre que irá mergulhar pelas novas exposições e coleções do CIAJG. Ambas as visitas têm lotação limitada e um custo de 2 euros, carecendo de inscrição prévia.

Patente até 12 de fevereiro de 2022, o novo ciclo expositivo do CIAJG poderá ser visitado de terça a sexta-feira, das 10h00 às 17h00, e ao sábado e domingo, das 11h00 às 18h00. A entrada nas exposições tem um custo de 4 euros ou 3 euros com desconto, sendo a entrada gratuita nos domingos de manhã (11h00-14h00) e regularmente para crianças até aos 12 anos de idade. 

A tomar nota, a visitar. •

+ CIAJG
© Vírginia Mota, Diário Atmosférico, Nas margens da ficção.

Já recebe a Mutante por e-mail? Subscreva aqui .