Otto Dix e a guerra: o jogo infinito

Neste quadro que pertence ao ano 1920, e se encontra em Berlim, Otto Dix, pintor alemão enquadrado no expressionismo, providencia uma imagem perturbadora para após a Grande Guerra, decorrida entre 1914 e 1918.

“Jogadores de Skat” retrata a ruína. Tudo é sangue ali. E vemos como a guerra nos devolve, em qualquer tempo e circunstância, a insanidade. Nada se constrói, efectivamente, a partir da caótica trama e do conluio das forças de destruição maciça: porque a elas sucedem gerações moribundas com os corpos marcados pela praga. A praga é essa hipótese que a guerra coloca a nu: a de poder enterrar na carne do Outro ferros com o fito único de matá-lo. A possibilidade que a guerra coloca sintetiza-se em: matar um ser humano. Mata mais, muito mais, mas a sua marca é essa: matar o Outro. Um ser humano, uma pessoa, é um cristal reflector: tem a si agregados outros seres humanos, as coisas, a terra onde habita, as memórias que lhe dão passado e, por tudo isto, um chão em que se enraíza. Hoje labora-se no desenraizamento: insistindo na autodeterminação, descartando os bens, sobrepondo à terra as imagens flagelantes do desejo, rasurando rituais e repetições, tornando, pois, obsoleta a própria vida.  

Digo que nestes tempos em que vivemos pretendem-se cabeças nuas e corações impenetráveis, em lugar de corações transparentes e cabeças opacas: vigia-se o pensamento e impede-se o acolhimento. Talvez nunca, como agora, se tenha necessitado tanto de amor, mas parece que se anda num jogo de flippers: atira-se e bate-se em todo o lado, aleatoriamente. Em tudo. O amor obriga a parar: detém-se. O amor não é caótico: concentra. Se virem uma pessoa muito concentrada a ler um livro, serenamente sentada numa mesa, sozinha, podem crer: está imbuída de amor. “Jogadores de Skat” retrata a ruína, e também o inferno. O inferno na Terra. Esse inferno para cujas labaredas aflitivas nos cabe estar sempre a lançar água, de todas as formas concebíveis. O quadro de Otto Dix enquadra-se no chamado movimento expressionista, mas também nos providencia uma muito eficaz alegoria visual que atravessa os séculos e vem interceptar o espaço em que nos movemos e criar uma espécie de espinho que infecta. A inflamação é notória: dos jogadores, do tempo, do que estamos a viver agora.

© Imagem de entrada: “Jogadores de Skat” de Otto Dix, German, 1891-1969

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