… uma exposição no Museu da Água de Coimbra, que esteve patente até dia 19 de Agosto de 2022, com curadoria de Helena Mendes Pereira e 15 artistas, com o mesmo número de obras correspondente, vindo/as da Colecção Norlinda e José Lima.
O convite era feito à entrada pela escultura de Rui Chafes – “O Silêncio Gelado de Deus III”: o facto, bastante significativo, de nela se desenhar um banco, ou de ser também um banco, em que era impossível sentarmo-nos, ou sequer projectar essa possibilidade, não apenas decorrente de ser uma obra de arte e de o escultor avisar que o que faz é para ser tocado unicamente com os olhos, mas porque a identidade da escultura o apresenta como impossibilidade efectiva, e entre este plano inferior e o superior, portanto, determinava-se logo uma falha abismática; alertava-nos para algo da ordem da angústia. Tal angústia poderia eventualmente dissipar-se assim que transpúnhamos esta entrada: com efeito, o espaço do Museu da Água é claro, tem um balcão superior que permite alcançar com a visão o piso térreo, para cima predomina a luz. E de certa forma dissipa-se: foi com relativa leveza que circundei o balcão, desci as escadas, olhei as obras, alcancei o espaço contíguo e parei naquele corredor profundo, inundado de luz e água, que se intensificava com a instalação admirável e mágica de Yonamine – “My Ghost”.
Apenas depois fui encaixando as peças do puzzle: um corpo sem cabeça, uma cabeça sem corpo, uma perna sem destinatário, um rosto performático sem interlocutor, uns lábios sem rosto, um barco sem marinheiro, casacos sem presença humana, falsas memórias. Entretanto, no centro, bem no centro, uma mesa disposta, como que para o festim de todos os inconscientes: Daniel Barroca e as suas “5 Obstructed Images” pareciam dar as cartas para que todos os fragmentos presentes nesta ocasião se sentassem à mesa, como se se tratasse de ex-votos. Vinham, então: a beleza, a vingança, a astúcia, o desejo, a sedução, o fetiche, o horizonte, a ausência, o antigo e o novo, o ancestral e o moderno, o pagão e o cristão. Naquela mesa em que se comeu e bebeu, enquanto decorria a guerra, e onde permaneceram os copos cheios de memórias tão escuras, tão densamente sujadas pela guerra, contudo, existia uma outra impossibilidade enunciada: a de conviver serena e compassadamente. “5 Obstructed Images” era também uma espécie de observatório da civilização moderno-contemporânea, com a cidade – “S. Paulo 24/9/2001” de Rui Toscano, como pano de fundo. S. Paulo-São Paulo / Paulo de Tarso: aquele que se regenerou através da conversão ao Cristianismo.
Uma exposição, e colectiva como aconteceu aqui no Museu da Água de Coimbra com “Olimpos e Peregrinações”, obriga-nos a tecer relações, ponderações, diálogos, coreografias, como se cada obra de arte existisse em si, sim e certamente, mas inevitavelmente disparasse em direcção às restantes, instalando-se vibrações de natureza específica e que interessará identificar. E esta é a ocasião em que as obras não podem ser deixadas à sua sorte, como se unicamente engolissem quem as olha; sem dúvida que, atendo-nos a cada obra de arte em particular e abstraindo relativamente das restantes, esse movimento de imersão é propiciado, mas concomitante com ele existe um conjunto onde, então, são passíveis de identificar relações, de observar ponderações, de estabelecer diálogos, de enunciar coreografias.
Três obras-momentos tutelares creio que surgiam em “Olimpos e Peregrinações”, materializadas: num convite – à entrada, com a escultura de Rui Chafes; numa convocação – ao centro, com a instalação de Daniel Barroca; numa peregrinação – no fim, com a instalação de Yonamine. Tais obras-momentos impuseram, creio também, diferentes sensações, embora todas elas marcadas por um lastro de impossibilidade, de ausência, de angústia, pois assinalavam dissonâncias concretas: um banco onde não nos podemos sentar; uma mesa onde não conseguimos confraternizar; um caminho feito de vácuo. Apesar da impossibilidade, da ausência, da angústia, sabemos que cada obra de arte ali presente em “Olimpos e Peregrinações” define uma economia própria relativa à criação de cada artista, sendo proposta e, simultaneamente, cosmovisão.
15 obras de arte para 15 artistas: Alexandre Baptista; António Charrua; Augusto Canedo; Damien Hirst; Daniel Barroca; José de Guimarães; José Rodrigues; Julião Sarmento; Kcho / Alexis Leyva Machado; Leonel Moura; Niki de Saint Phalle; Rui Chafes; Rui Toscano; Vasco Araújo; Yonamine.