“O Juízo Final”, de Hieronymus Bosch

Pertencente a um tríptico, “O Juízo Final” data de cerca de 1482 e trata-se de um óleo sobre tábua, podendo encontrar-se em Viena.

O mundo sempre foi assim: com o céu e a terra, e o inferno. No entanto, o tempo percola-se também nos desejos, nas promessas, e hoje é tudo o mesmo, mas é também, ainda assim, muito diferente. O chamado progresso, cruzado pela noção de sociedade do bem-estar, certamente proporcionou várias conquistas interessantes, todavia, na sua senda veio a criar-se um inferno também mais horripilante. Céu, terra, inferno: realidades deste mundo, e não de outros. Não existem outros mundos: a essa evidência se chama realidade. E em todos os momentos do tempo, esta entidade enigmática, mas que se mede e manifesta nos corpos, bem como no pó que atinge as coisas, e em que se transformam no fim os corpos, houve sempre tudo. O inferno de hoje está no desligamento das conexões. Marc Augé, por exemplo, alertava para o facto de aquilo a que chamamos “crise” estar relacionado com a incapacidade demonstrada para fazer ligações, para relacionar o que aparentemente não se conecta à partida. Vemos as consequências desta incapacidade todos os dias, por exemplo, nas políticas identitárias, por sua vez advindas do narcisismo mais feroz que alguma vez poderia ter sido imaginado. Narciso certamente atiraria uma pedra nas águas em que se reflectiu, para quebrar um feitiço que apenas agora atinge as mais graves consequências.

A atomização como medida para avaliar a solidão colectiva que se vive será um cliché suave perante a violência com que muitos acusam, nomeadamente, aqueles que ainda contemplam e se assomam com isso. Vemos como o inferno é a vociferação, as palavras de ordem, a afirmação, a imposição, eu, eu, eu, eu, eu e tu, eu. Os mistérios são desfeitos, a sacralização é devassada, o amor é desdenhado. Pululam os tutoriais. Prolifera tudo quanto anula a secreta fresta por onde nos podemos esgueirar para percorrer, com respeito, a obra de arte, a montanha, a árvore, a pessoa. Espetam-se ferros na carne das pessoas, espetam-se palavras de ordem, gritos, goelas muito abertas, corpos todos retorcidos, como as almas sem descanso. Hasteiam-se bandeiras nos corpos de qualquer pessoa que passa, à sua revelia, pessoas que só querem ver a cidade, passear nas ruas da cidade. Já não se pode ser flanêur sem se ser assediado pelos vendedores das bandeiras. Que são estes vendedores de bandeiras, bem como as lojas todas que abriram ao público, senão como esses pagamentos que na Idade Média se exigiam na transposição das pontes? Este nosso tempo, que se orgulha tanto da sua liberdade, da sua liberdade sem marcadores, tem mais “portagens”, efectivas e simbólicas, do que alguma vez teve a época medieval. E tendo aumentando exponencialmente, desde esses séculos de obscuridade que sempre se contrapõem ao progresso actual, a construção de pontes, é de facto desconcertante observar como querem transformar cada pessoa numa bandeira, mas sem o correlato quinhão de “terra” que lhe estaria prometido. Emmanuel Levinas e Hannah Arendt disseram-no, cada qual à sua maneira: que a cada pessoa devia caber um pedaço desta terra, onde existisse, portanto, mundo. Não é isso que está a acontecer, nitidamente. Portanto, estas bandeiras que ondulam ao sabor do vento, empunhadas por corpos essencialmente retorcidos, e vociferantes, são muito úteis a quem quer destituir as pessoas da sua prometida propriedade. 

E termino com Simone Weil: “Só os fanáticos apenas prezam a sua existência na medida em que esta se encontra ao serviço de uma causa colectiva; reagir contra a subordinação do indivíduo à colectividade implica que se comece pela recusa à subordinação do destino próprio ao decurso da história. Para decidir-se a um tal esforço de análise crítica, bastaria compreender que ele permitiria, àquele que o empreendesse, escapar ao contágio da loucura e vertigem colectivas, reatando por sua conta e para lá do ídolo social o pacto original do espírito com o universo.”

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