'O Palácio de Cidadãos', de Rui Pires (2024)

Uma câmara do povo

‘O Palácio de Cidadãos’, de Rui Pires
DA VAGA DE SALA – Especial Doclisboa

Em DA VAGA DE SALA – Especial Doclisboa do ano transato escrevi sobre ‘A Câmara’ (2023), da dupla Cristiane Brum Bernardes e Tiago de Aragão, um título que funde as duas palavras homónimas – a câmara que filma a câmara de Deputados do Congresso Brasileiro -, ou seja, uma câmara (que filma) na câmara (de Deputados) ou a câmara (de Deputados) pela câmara (que filma). O ângulo de abordagem dos realizadores brasileiros incidiu especialmente nas mulheres Deputadas, acompanhando o trabalho legislativo delas, mas também a respetiva promoção (individual) nas redes sociais – veículos para chegar de forma direta, personalizada, mais informal, mais coloquial, e sem contraditório, ao povo -, participação em entrevistas e programas de televisão ou ainda conversas no corredores do Congresso. Apesar desta amplitude na mostra do trabalho parlamentar das mulheres Deputadas de Brasília, o filme tem uma matriz fortemente institucional, consubstanciada por uma câmara (que filma) a manter a distância nos trabalhos das sessões legislativas; bem como, a deter-se, sem pressas, em várias discussões procedimentais, argumentativas, legais, ideológicas, nos diversos temas; e, acima de tudo, pela neutralidade (se assim se pode dizer) no posicionamento ideológico que a câmara (que filma) adota, conferindo espaço e tempo proporcionais nos acirrados confrontos de ideias, crenças e valores – cabe-nos a nós, espectadores, censurar as alarvidades que vamos vendo e ouvindo. Na altura do escrito sobre ‘A Câmara’, recordo-me de mencionar a destrinça entre este filme e o ‘Democracia em Vertigem’ (2019), da também brasileira Petra Costa, em que a autora mergulha no impeachment de Dilma Roussef sem despir o fato das suas convicções pessoais e políticas, com absoluta legitimidade, claro está, entrelaçando-as com os factos que vai expondo e narrando, sem desvirtuar a realidade, diga-se. Depois de ver ‘Palácio de Cidadãos’ (2024), de Rui Pires, esta terça-feira na Competição Portuguesa do Doclisboa, diria que encontro mais similitudes com ‘A Câmara’, quer pela faceta institucional, quer pela vertente conceptual: uma câmara que filma sem querer fazer-se notar, sem injeção de voz e/ou escrita de narração, investindo nas imagens que nos mostra e no que ouvimos e lemos delas. Todavia, ao contrário de ‘A Câmara’, o filme de Rui Pires está ancorado na ideia de uma luta democrática por direitos fundamentais, iniciada no 25 de Abril, que tem de prosseguir, e aí aproxima-se um pouco da obra de Petra Costa, numa clara mensagem política. Não é à toa que o filme termina ao som da canção de José Mário Branco: “Eu vi este povo a lutar para a sua exploração acabar…”.

“O Parlamento português, ou Assembleia da República, é constituído por uma câmara de Deputados que representa todos os portugueses”, podemos ler no site oficial daquele organismo. Uma câmara do povo e para o povo que Rui Pires esforça-se por recordar, fazendo uso da sua câmara a cirandar pela Assembleia da República (AR) entre 2018 e 2019, o último ano da primeira legislatura do governo chefiado pelo então primeiro-ministro António Costa, em que o Partido Socialista (PS) contou com o apoio parlamentar do Bloco de Esquerda (BE), do Partido Comunista Português (PCP) e do Partido Ecologista Os Verdes (PEV) – uma solução política denominada, como todos sabemos, de geringonça. Para lembrar desde o começo que aquela câmara pertence ao povo, as primeiras imagens que vemos são mesmo de rostos comuns, do povo, na fila para visita à AR, de portas abertas no dia de comemoração do 25 de Abril. Numa representação parlamentar menos diversificada do que aquela que se verifica atualmente, é num ápice que um dos funcionários da AR explica a um cidadão assumidamente leigo em política a arrumação dos diferentes partidos no hemiciclo de então, da esquerda para a direita: BE; PCP-PEV; PS; PAN; PSD; CDS. Vemos rostos um tanto ou quanto apardalados dentro daquela sala, talvez percebendo que a real dimensão do espaço é substancialmente inferior à perceção ótica nas imagens que vemos na televisão; ou então, alguns deles, estarão a viajar pela mente até acalorados debates parlamentares vividos ali.

Seis anos separam-nos daquelas imagens e, na verdade, conseguimos identificar a constância dos mesmos problemas em direitos fundamentais dos cidadãos, mas, ainda, naquele momento, a ausência de outros temas fraturantes que hoje estão na ordem do dia. Vemos com foco e pormenor o livro da Constituição da República, de 1976, singelamente trasladado para uma vitrina expositora. “Isto é um momento solene”, diz uma das funcionárias da AR. E é imbuído no espírito da Constituição da República que a câmara de Rui Pires assenta em debates, comissões e grupos de trabalho sobre direitos consagrados (na constituição) como a habitação, o trabalho – especialmente estes – ou a saúde. “A habitação é uma emergência social”, diz a deputada Helena Roseta (PS), assim continua, com a diferença de agora a emergência ser ainda maior. A precariedade laboral experienciada pelos trabalhadores da Portway (empresa prestadora de serviços de assistência em escala nos aeroportos), a quem ouvimos a deputada Rita Rato (PCP) dar alento – “A razão está sempre do vosso lado, vocês têm a experiência de sobreviver com salários de miséria” – continua a ser comum a muitas empresas; a discrepância salarial entre trabalhadores e gestores na mesma empresa, que o deputado José Soeiro (BE) traz – graficamente, inclusive – ao debate no hemiciclo, prossegue, face à qual uma deputada do PSD riposta, recusando a ingerência do Estado nas empresas privadas, e com o CDS a apelidar a bancada do BE de totalitária e estalinista. Assistimos a alguns confrontos programáticos e mesmo ideológicos, mas, diga-se, sempre pautados por urbanidade, decoro, respeito; sem a baixeza, o insulto, a falta de compostura que assistimos por estes dias na AR, nos 50 assentos mais à direita do hemiciclo. Eis uma diferença. A imigração, que tem sido combustível de alta propagação para a extrema-direita populista, agora também em Portugal, ainda não era tema de discussão. Eis outra diferença. Mas não deixa de ser curiosa, e ao mesmo tempo impactante, a infeliz coincidência que encontramos no discurso do deputado Jorge Falcato na cerimónia comemorativa do 25 de Abril, naquela passagem sobre a bala da PSP que o deixou numa cadeira de rodas, num 10 de Junho de 1978, com os mais recentes acontecimentos no bairro do Zambujal (Amadora).

Cá fora, na parte exterior do palácio, a calmaria é total. O gato boceja ao sol, os passarinhos procuram-se um ao outro, a água da fonte corre lentamente, o pavão entra pela porta aberta. Voltamos lá para dentro para vermos um pouco do protocolo a cumprir na preparação dos almoços com convidados do Presidente da AR – com as funcionárias às voltas da mesa -, ou na preparação do dia dos cravos e a questão politicamente lógica de sentar Adriano Moreira (falecido, entretanto) à direita de Francisco Louçã.

E no final são projetos de lei aos magotes, amontoados em caixas, transportadas por mãos do povo,  que materializam o trabalho dos Deputados do povo. Deputados que também são apelidados de povo nos créditos finais.

‘O Palácio de Cidadãos’, de Rui Pires (2024)
Visionado no Doclisboa, Cinema São Jorge