DA VAGA REALIZADOR DO MÊS
‘Casa Grande’, de Fellipe Barbosa
Ricos e pobres; patrões e empregados; a vida dentro de uma mansão no Brasil. Assim vimos com riqueza, quer estética quer de narrativa, em ‘A Que Horas Ela Volta’ (2015), de Anna Muylaert, ou em ‘Três Verões’ (2019), de Sandra Kogut – este último já foi trazido anteriormente em DA VAGA DE CASA -, mas um tudo-nada antes destes dois filmes, e com semelhante ponto de partida angular, Fellipe Barbosa – o escolhido DA VAGA REALIZADOR DO MÊS para Novembro – trouxera a sua longa-metragem de estreia, ‘Casa Grande’ (2014). Numa entrevista à época – já lá vão 10 anos -, o realizador brasileiro recusava a ideia de retrato autobiográfico (enquanto um jovem de 17 anos) no filme, não enjeitando, porém, toda a influência que a sua experiência de vida, seja no plano familiar seja no plano social, teve na criação da história, preferindo falar em retrato imaginário. E diga-se, quanto melhor e maior é o conhecimento do contexto e das circunstâncias que envolvem a história que se quer contar, mais ferramentas estão pois disponíveis nas mãos do criador da mesma: o autor. Todavia, o que mais impressiona em ‘Casa Grande’, e que, diria até, faz dele distintivo, é a competência artística, pura mestria, de conseguir condensar em apenas dois planos – o inaugural e o derradeiro – todo o filme. O ponto de partida e o ponto de chegada da narrativa estão ilustrados deliciosamente naqueles dois planos, sobrando para o resto do filme uma espécie de viagem, com motorista ou de ônibus [autocarro], de um ponto até ao outro, da mansão para a kitchenette, da vista jardim-piscina-jacuzzi até à vista das casas em tijolos, da Barra [da Tijuca, zona privilegiada no Rio de Janeiro] até à favela, do silêncio noturno que só os grilos quebram até ao ruído das vozes das crianças que se ouvem sem se verem, do pai solitário até ao filho acompanhado, do pai escorregadio a recolher ao interior da casa até ao filho firme sentado a fumar no parapeito da janela, do aprisionamento até à libertação. Tudo isto e outras coisas mais mostram esses dois planos, ambos de câmara fixa, relativamente demorados, entre dois a três minutos: o primeiro plano mostra a mansão, embutida arquitetonicamente a preceito no meio de árvores, iluminada na noite, no exterior e nos diferentes compartimentos do interior, permitindo assim assistirmos ao desligar, uma a uma, de cada luz, até ao escurecer total; já no último plano vemos o interior da kitchenette, onde a cama (quente), o fogão, o frigorífico, as roupas que secam, reduzem ao mínimo o já de si exíguo espaço.
O pai que vemos a sair do jacuzzi noturno, a apagar as luzes, e a escorregar – um prenúncio da queda literal que tem mais à frente, mas, mais do que isso, da queda de um pedestal financeiro onde estava sentado – é Hugo (Marcello Novaes), um investidor de fundos a cair ao sabor da quebra bolsista, enredado entre investimentos e empréstimos de dinheiro de amigos, cada vez mais isolado e perdido naquela casa grande. O filho é Jean (Thales Cavalcanti), Jean porque a mãe Sônia (Suzana Pires) é uma dame chic que dá aulas de francês em casa a outras que ambicionam também o exercício dessa elegância gaulesa. Assistimos à distância, a uma distância bem medida e definida pelos enquadramentos primorosos, geométricos, dentro de casa, ao toque satírico que emana do seio deste ambiente familiar – contempla ainda a irmã de Jean, Nathalie (Alice Melo), frequentemente secundarizada, esquecida, especialmente pelo pai, que tem uma fixação pelo filho -, quer pelas constantes correções de Sônia às empregadas sobre o pronunciar corretamente do nome Jean, quer pelas conversas à mesa de jantar em que Sônia responde ao marido em francês e ofende-se quando ele diz que atualmente [o francês] é uma língua em desuso, ou ainda pela sonoridade da sinfonia de Bach que acompanha os jantares da família, que por vezes é conspurcada pelos palavrões que saem da boca de Hugo – geralmente indignado pelas escolhas pretendidas pelo filho no que toca à carreira académica, “comunicação não é para gente séria”, diz o pai, para quem economia é a área da continuidade na dinastia familiar – ou da empregada Rita (Clarissa Pinheiro), a partir da cozinha em resposta a telefonemas que simulam (e gozam com) resgates para sequestros. E na calada da noite, quando todos dormem, é o ‘quartinho’ dos fundos, no exterior da casa, que nos habituamos a ver em telenovelas e filmes do Brasil como sendo o espaço onde os empregados pernoitam, que Jean procura consolo, no colo de Rita, procura fuga à redoma – vemos frequentemente o portão de grades, aqui a fazer lembrar as grades e o respetivo aprisionamento de ‘O Som ao Redor’ (2012), de Kleber Mendonça Filho, que trouxemos em DA VAGA REALIZADOR DO MÊS, de Junho -, procura a libertação.
Nesta viagem do plano inicial até ao plano que encerra o filme, que acompanha o quotidiano desta família de classe alta do Rio de Janeiro, centrada mais afincadamente nas rotinas do jovem Jean, Fellipe Barbosa não cede às tão famigeradas tentações de romantizar, dramatizar, hiperbolizar ou violentar a história. Quando passou a ir de ônibus para o colégio – privado, claro -, Jean conhece Luíza (Bruna Amaya), que vem da (favela) Rocinha, ou de perto, e que estuda em escola pública, encontram afinidades na música, tocam guitarra na praia, dançam forró, envolvem-se, mas não há lugar para contos de fadas, namoros de menino rico com menina pobre que rasgam fronteiras, derrubam obstáculos, acontece e esmorece, apenas, como muitas vezes na realidade do quotidiano. A perda da riqueza de Hugo e as dívidas que vai acumulando levam ao despedimento e demissão, ambos os casos, dos empregados, levam ao apontar de dedo a Jean dos colegas cujos pais foram ‘enganados’ por Hugo, levam a que Sônia comece a vender produtos cosméticos a outras madames, mas tudo parece acontecer com relativa naturalidade, numa toada linear, quase sem gritos, quase sem choro, com controlo, quase sem desespero. Quase, porque há uma cena de desentendimento de pai e filho, engalfinhados no jardim, e um daqueles telefonemas a simular sequestro que abala a mãe. E a tão badalada violência nas ruas do Rio de Janeiro também não tem materialização no filme, ficamos apenas por raras sensações de ameaça, com a câmara no autocarro a proporcionar essa ilusão.
Porém, ‘Casa Grande’ não foge à politização. Vai a jogo. Estando na ordem do dia a discussão sobre a lei de quotas – uma lei que reserva 50% das vagas em universidades brasileiras a alunos provenientes da escola pública, que depois são subdividas ainda de acordo com o rendimento do agregado familiar, assegurando sempre uma percentagem mínima de representação proporcional de negros, indígenas e pardos -, num período de governação da então Presidente Dilma Roussef, o tema divisivo é abordado à mesa de jantar da família, pela professora na sala de aula do colégio de Jean, e num churrasco em casa da família em que Luíza marca presença. E é precisamente pela voz de Luíza, não-branca, pobre, que ouvimos uma acérrima defesa da lei de quotas, chocando com o pai de Jean e os restantes convivas – brancos e ricos. Mais um mérito de Fellipe Barbosa, as bandeiras políticas respetivas são defendidas por quem vive, goza ou sofre, efetivamente o que está em causa. Um rapaz negro na turma de Jean assume-se contra a lei de quotas, mas este, apesar da cor da pele, frequenta escola privada, está inserido numa classe de maior privilégio – lembrei-me aqui de uma alpinista política que lidera um partido português nada recomendável, o qual esperemos que não chegue ao nosso parlamento. Ou seja, o filme não entrega a Jean esse embate ideológico com o pai – poderia ser uma tentação -, não fazendo dele um anticapitalista ou defensor de justiça social, até porque ele precisa de viver primeiro o que ainda não viveu, precisa de libertar-se para viver, por agora.