Maria Helena Vieira da Silva construiu uma visualidade própria e dotou-nos, por isso, de uma visibilidade mais rica, mais intensa, mais eloquente, onde, simultaneamente e sem paradoxo, podemos repousar.
As mulheres, historicamente, enfrentaram o ónus da sociedade pensar que os trabalhos criativos e reflexivos por elas encetados pertenciam a autorias masculinas. Embora esse ónus possa parecer já uma pálida imagem nesta actualidade de pirotecnia evidente, a verdade é que a originalidade e o rasgo continuam, se exercidos no feminino, a perturbar. Anexo apenas dois exemplos. Manuela Serra com o filme “O Movimento das Coisas”, terminado em 1985 e um achado para o século XXI; e se João Bénard da Costa escreveria em 2004 que este filme singular, emparceirando com outras singularidades do cinema português, teria um destino ainda mais excêntrico, convenhamos que também poderia ter perguntado – e onde está a Manuela Serra? Agora temos a resposta. O outro exemplo, e esse senti-o pessoalmente na força da pancada, duplamente, foi o da ideia veiculada por uma pessoa conectada com a edição de livros de que o mistério da escrita de Maria Gabriela Llansol se deveria, não a ela, mas ao marido; provavelmente, para esta pessoa, Augusto Joaquim escrevia os livros de Llansol quando esta dormia e depois, por artimanhas esconsas, convencê-la-ia de que a autora era ela, e só ela – será?
Creio que bastariam estas duas situações, uma do domínio público e outra que me coube em privado (pese embora não saiba se esta pessoa da edição terá, eventualmente, partilhado a sua ideia macabra noutras circunstâncias), para atestar a inquietação, a insana inquietação, que pode provocar o toque de Midas se estiver vinculado a mãos de mulheres. Nada deste atavismo das sociedades perturbou, por outro lado, a relação que se estabeleceu entre Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes: partilharam as vidas, os corpos e as respectivas criações com a naturalidade com que o fazem os grandes espíritos; Arpad desenhava, aliás, Maria Helena a exercer o seu ofício de pintora, o que vem confirmá-lo como um homem lúcido, amoroso, inteligente. A amplitude e a reverência do sentimento que os uniu reverberou, e disso tenho uma prova próxima, noutros casais, dos quais não reza a história.
John Berger explicou, de forma didáctica e económica através das obras de arte, que as mulheres são seres que essencialmente “aparecem” e que permanecem na disponibilidade de serem usurpadas pelo olhar masculino. Neste entorno, a postura de Arpad Szenes ao retratar Maria Helena Vieira da Silva a pintar vem adensar o mistério, tanto da criação, como da própria criadora: porque a nudez, tanto vem do direito – efectivo desnudamento e aparição das carnes, como vem do avesso – permanência das figuras vestidas de tal forma que se podem despir com os olhos. Não será de menosprezar que um determinado crítico de arte se tenha referido à série Untitled Film Stills de Cindy Sherman como intensamente erótica, vindo a fotógrafa como detonadora de uma vontade quase incontrolável de a “possuir”. Ou seja, definitivamente, o passado tem muitas peles que continuam a colar-se aos indivíduos, sejam estes homens ou mulheres; todavia, no caso destas recrudesce o efeito da nudez.
Maria Helena Vieira da Silva, ao providenciar uma visualidade própria através do ofício da pintura dotou o Humano de espírito, mais humano, e, por outro lado, facultou às mulheres vestes que aplacam a nudez congénita com que se debateram, e deverão debater-se no futuro. Assim, este seu óleo sobre tela que parece apresentar uma condensação entre o Herói e o Arauto, vindo do ano de 1939, parece sintetizar a própria luta que nos cabe encetar, seja em 2025, seja no futuro.