Ana Hatherly, que desenvolveu a “mão inteligente”, deixou-nos as palavras, deixou-nos o corpo e a música, tanto da ART, como da intensa Vida.
Esta é uma ART feita com tinta de spray sobre papel e data de 2003, e pertence ao Centro de Arte Moderna da Gulbenkian. A obra de arte tanto se proporciona ser transportada, de forma imaginária essencialmente através do decalque de um diagrama aéreo, como se finca nos lugares e cria mais visível, com o que contribui claramente para a efervescência do real. Aqui, Ana Hatherly como que cravou na folha de papel a palavra ART através de carbono bem duro.
Nascida no Porto no ano de 1929, Ana Hatherly exerceu diferentes mesteres, o da criação em artes plásticas em que a palavra marcou presença assídua foi um deles. Aqui, nesta obra de 2003 é claro que nos deixa com uma ligação à street art, e, por esta via, abre para a dimensão de grito e de exemplaridade da obra de arte. Claro que uma obra de arte também pode permanecer no espaço público de forma circunspecta, essencialmente recolhida, envelopada consigo mesma, dialogando connosco por uma espécie de código morse. Não me parece, todavia, ser este o caso e mais o vejo, até, como ao contrário: o grito e a exemplaridade da obra de arte a desassossegarem um espaço fechado sobre si próprio. Assim, Ana Hatherly mostra de forma bastante económica a concentração, numa folha de papel, da explosividade que pode advir da (obra de) ART quando em contacto com a/s rua/s.
O Ocidente, em que actualmente se acoita um multiculturalismo acerado, foi onde historicamente às mulheres se permitiu paulatinamente a possibilidade de uma expressão pública e radicada na autoria irredutível. O facto de hoje se conservarem, por uma vertente feminista que tem muito medo do essencialismo, os “homens” e as “mulheres” no formol da dialéctica que não se coíbe de os e de as repudiar, para chegar a um cenário ideal, não deve desviar-nos nunca das lutas do passado que, inevitavelmente, estabelecem veios comunicantes com o presente. Joan B. Landes, que estudou a ligação das mulheres com o republicanismo e com a Revolução Francesa, escreveu também, e bem, que os salões da nobreza permitiam uma liberdade e uma distinção às mulheres que a República não consentiria jamais: pois esta segregou masculino e feminino, arrumou este na casa e votou aquele à manifestação pública. Nesta medida, o feminismo dito histórico, o que remonta geneticamente ao século XVIII sobretudo, será a luta pela aquisição desses direitos que a Declaração referente aos Homens e aos Cidadãos não reconheceu às mulheres; uma Olympe de Gouges, por exemplo, que chamou a atenção para a fragilidade do feminino emanada da Revolução Francesa e contrapôs uma Declaração referente às Mulheres e às Cidadãs, subiria ao cadafalso.Esquecer a propensão do Ocidente para se reflectir e corrigir erros, tanto relativos à forma como as mulheres foram afastadas da res publica ou se lhes impediu a expressão plena, mas também relacionados com o repúdio da escravatura cujo enquadramento legal aqui viu o seu ocaso; esquecer isto é realmente pensar-se que vivemos na Terra do Nunca. E talvez seja prudente, contra as teses verdadeiramente tolas que pugnam pelo “fim da História”, lembrar que a Terra tem vida para lá presença humana, o que não obsta a que seja necessário, agora, defender uma outra espécie de antropocentrismo que, não repetindo os séculos XV e XVI, pese embora, possa estar eivado de consciências fazedoras: mas em vez de expandir, teremos de contrair.