1977, ano de “Alternativa Zero”, a exposição-vanguarda da responsabilidade organizativa devida a Ernesto de Sousa, foi também aquele em que Clara Menéres apresentou a sua “Mulher-Terra-Viva”.
Composta de acrílico, terra e relva, medindo 300 x 280 x 90 cm, a escultura-instalação-performance proposta por Clara Menéres para integrar a exposição “Alternativa Zero”, ocorrida na Galeria Nacional de Arte Moderna em Lisboa, entre os meses de Fevereiro e Março do ano de 1977, foi a visão da Mulher, da Terra, da Vida, que a escultora entendeu ser importante devolver ao Mundo nesse contexto. Por mim, considero também muito importante dar a ver “Mulher-Terra-Viva” agora, obstando a que fique presa no ano de 1977, tanto na vanguarda presente em “Alternativa Zero”, como na arte da Bienal de São Paulo, ocorrida no mesmo ano de 1977, e em que marcou presença, ou depois, em 1997, quando no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, Porto, ocorreu a exposição “Perspectiva: Alternativa Zero”.
Ouçamos Clara Menéres, sobre “Mulher-Terra-Viva”, em entrevista às Faces de Eva no ano 2000: “É uma peça que identifica as curvas da paisagem com o corpo da mulher, uma clara referência aos mitos da Terra-Mãe. É uma ideia que está inscrita na tradição mítica e sagrada da humanidade. […] Esta obra fez-me compreender que tocar na versão feminina da mitologia das origens, nos ciclos da gestação, no mistério da transformação da morte em vida e na figuração do corpo da Grande Mãe, era também tocar em níveis muito profundos do inconsciente humano. É óbvio que esta escultura reflecte a minha preocupação com a ecologia […], o respeito pela vida e a preservação das raízes culturais. Dentro desta linha, outras peças se seguiram, nas quais tentei recuperar a tradição etnológica, integrando as formas e os modos que o povo tem de se relacionar com a natureza, extraindo dela vida e sustento.”
Efectivamente, a escultura-instalação-performance define um torso em alusão ao corpo feminino, em que se destacam, perfiladas, partes muito significativas: seios, ventre, vulva; quer alimentícias – seios; quer contentoras/nutrientes/engendradoras– ventre; quer pórticos de entrada, do sexo, e de saída, da criança – vulva. “Mulher-Terra-Viva”, assim, define uma estratificação do corpo da mulher que insiste nas partes associadas à reprodução e à maternidade, apresentando-nos uma espécie de abstracção que flutua ao evidenciar a potencialidade da Mulher ou o Grande Feminino. Repare-se que a Mulher ou o Grande Feminino é precisamente o que uma via feminista da contemporaneidade tenta desmontar, fazendo com que se vejam a partir de uma construção histórica longa e concreta pois, de forma opressora, terão conduzido ao Mito e à Essência, em todo o caso, a entidades de fixidez dolorosa e que impedem as mulheres reais de serem actrizes concretas, tanto quanto limitam os protocolos de existência.
Pela minha parte, ficar por aqui, ou seja, associar “Mulher-Terra-Viva” a um Eterno Feminino que foi construído pelos Homens é redutor, pois obrigar-nos-ia a aceitar que a natureza é feminina e a que cultura é masculina, e neste caso respondo-vos: sim e não; sim, a natureza tem sido associada ao feminino e a cultura tem sido associada ao masculino; não, a natureza não é só feminina e a cultura não é só masculina. Não sendo agora, e aqui, o momento para desenvolver a dança que o par feminino/masculino estabelece com o par natureza/cultura, com todos os contrapontos e fugas que se exigem, gostava de vos chamar a atenção para o facto de “Mulher-Terra-Viva” estar integralmente coberta de relva em forma de atapetado e que, além de jorrar da vulva, também neste lugar cresce ininterruptamente, exigindo que se apare. A relva unifica o torso, já que forma o tal atapetado, e prenuncia, no mesmo gesto, uma disponibilidade total e nua.
A relva, em “Mulher-Terra-Viva”, é o operador que relaciona a Mulher à Terra e vice-versa, bem uma autêntica senha-de-uso: tanto da Mulher, como da Terra, parecendo que convida, sem dúvidas, a que se calquem, tanto uma como outra. Sigamos, entretanto, o mecanicismo aberto pelo século XVII, e que não mais deixou de funcionar, e a forma como devassou a Natureza; sigamos os filósofos das Luzes, para o que aqui vinco, Jean-Jacques Rousseau sobretudo, quando pergunta em Emílio, “Porque consultais a sua boca, quando não é ela que deve falar?”, sendo esta boca a das mulheres; sigamos o século XIX com a trincheira do público/privado e que corresponde, em linha directa, à do masculino/feminino; sigamos a visão salvífica proposta pelo Romantismo para o feminino, fazendo das mulheres as portadoras de uma responsabilidade redentora, mas não cumprida; sigamos, a par do Modernismo, a figura da prostituta como referente artístico. Cruzemos tudo isto com a condição actual da Terra, patente em duas realidades que se destacam, a meu ver: crise da equação Casa-Mundo; fragilidade e cansaço extremo. Para a primeira realidade, surge-nos que a natureza mitigou-se no simbolismo e presença, a que se sobrepõem nivelamento e agressão, tanto quanto os deslocamentos populacionais, em grande parte relacionados com guerras, desfazem a casa-lar; para a segunda realidade, temos vindo a ser alertado/as para a gravidade extrema das alterações climáticas.
Nestes termos, ou seja, nos do cruzamento que proponho, julgo que se perfila uma figura precisa que sintetiza a experiência histórica feminina, e por inerência das mulheres, particularmente: a Ferida. “Mulher-Terra-Viva”, escultura-instalação-performance que foi vandalizada durante a permanência da exposição “Alternativa Zero” através de profundos golpes, coloca-nos frente a frente, sim, com a Ferida. Esta figura feminina – Ferida, tanto dá conta, então, de uma herança, como se apresenta como um sinal de alerta generalizado para o “nosso” Espaço-Tempo, hoje.