Leonardo da Vinci dispensa apresentações, tal é a forma como se encontra inscrito no imaginário colectivo: desde a sua bela “Gioconda”, pequena e sempre surpreendente, até um’ “A Última Ceia” plena de experimentações técnicas.
“A Última Ceia” foi pintada no Refeitório do Mosteiro Dominicano de Sta. Maria della Grazie em torno dos anos de 1495 e 1498. Sobre ela diz-nos Martin Kemp, quem dedicou um estudo à vida e à obra de Leonardo da Vinci: “Uma carta de Ludovico ao seu secretário em 1497 insta-o a pressionar Leonardo a concluir o mural. Pintado a título experimental numa técnica mais parecida com a têmpera (utilizando um agente aglutinador de ovo) em vez do tradicional fresco (pintado em reboco húmido), sofreu perdas de tinta desde muito cedo. O restauro no final do século XX revelou pormenores impressionantes, confirmando embora o pouco que resta da pintura original de Leonardo em muitas partes do quadro.”
Qual a possibilidade real de acedermos, hoje, ao impacto social provocado por uma obra de Leonardo da Vinci? Por exemplo, o Renascimento, a que pertence este pintor que continua realmente a ser tão surpreendente com respeito à técnica, agora, como o era na época em que viveu e trabalhou, será exactamente o momento em que se começa a dessacralizar a arte e o Mundo, com o zénite a rodar sobre o Homem e impondo-se paulatinamente o antropocentrismo. Não esqueçamos que será, depois de Leonardo já não existir, mas ocorrido no mesmo século do seu desaparecimento, o momento em que a Igreja no Ocidente conhece um abalo através da eclosão da Reforma Protestante. Por tal, e verificando-se uma secularização progressiva desde o Renascimento, que decididamente defende o poder temporal em correlação com a míngua da espiritualidade enquanto experiência colectiva e partilhada, qual o significado, hoje, e ontem, d’ “A Última Ceia”, um tema central da iconologia cristã?
Porque a partir do Renascimento a pintura funcionou como espelho crucial da construção do Homem, e do Mundo como Imagem, concentrando na economia do quadro as mundividências irrompidas e disseminando-as. Os espelhos que o Renascimento nos legou, e sabemos que essa é a época em que a Modernidade desponta, estão todos na arte, sobretudo na pintura. Por isto é que a arte moderna, e sobretudo o espaço que para si, e nela, reservou o Modernismo, se afigurou tão inquietante: é uma herança que se desmorona, é uma imagem repercutida do Homem que se estilhaça, é um património que se eclipsa, é um Mundo que deixa de existir. Assim, quem quiser de facto saber da realidade da Modernidade deverá subsumir-se na pintura; quanto à fruição, mesma, não me parece que possamos recuperar o impacto que terá tido na época em que foi pintada “A Última Ceia”, por mais documentação descritiva e coeva de que nos possamos munir.
E isto porque temos e somos corpo, o que se esquece tanto, julgo, hoje. Mas também temos memória, claro: e foi nela que a arte moderna colocou a tónica, para lá da natureza como referencial de primeira água. Neste contexto, não é de estranhar que a partir da arte, e nisso foi ela assaz eficaz, se tenha pensado ser possível, quase, tudo. Todavia, como o regime da representação inaugurado pelo Renascimento perdurou por tantos séculos, digamos que se pôde conceber uma denotação simples, entretanto, vedada pela própria realidade, logo, demonstrando os limites naturais que nos precedem. Esqueceu-se que o quadro cegou com a arte moderna, como de forma económica alertou José-Augusto França, logo, a qualidade espelhante a que nos habituou a pintura alterou-se decisivamente, e propagou-se na arte.
De resto, o espelho que a pintura renascentista nos legou também foi aquele que correspondeu a um movimento de expansão espacial; ora, hoje, para onde podemos expandir-nos? Sabemos que a contemporaneidade cresceu em altura, mas já não resta certamente na Terra mais um pedaço de território por cartografar, logo, o movimento actual sugerido é o da imersão de cada um/a de nós, no interior. Os tempos pedem, por isso, análise psíquica. Aqui, “A Última Ceia” pode inspirar-nos: uma mesa posta, uma refeição partilhada, um acolhimento mútuo, uma partição do pão.