Produção, Criatividade, Palcos. Qual o futuro da cena musical? / Cristina Toscano de Faria

Entre o burburinho de uma super agitada Lisboa e de um frenético Porto, há uma Coimbra onde se passa tanto, à sua escala, e houvesse mais tempo para mais se aproveitar. Entre os vários espaços que procuram promover uma programação apelativa, dinâmica e de parceria com entidades activas da cidade, há um jovem espaço, sob a batuta de Cristina Toscano de Faria, que se tem vindo a afirmar, nota a nota: o Centro Cultural Penedo da Saudade (CCPS).

Cristina Toscano de Faria, Doutorada em Ensino e Psicologia da Música pela Universidade Nova de Lisboa, investigadora no CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical) da Universidade Nova de Lisboa – no âmbito da Música e Desenvolvimento Humano – e docente da área científica de Música da Escola Superior de Educação de Coimbra (ESEC) desde 1989, é a actual Diretora Cultural do Instituto Politécnico de Coimbra.
É nas mãos de Cristina que está o jovem Centro Cultural Penedo da Saudade, situado num dos espaços mais emblemáticos da cidade – o Penedo da Saudade – e é com a sua visão aberta e desempoeirada que o espaço se abre à cidade, aos seus artistas, pronto a receber as artes várias de uma cidade plena de criatividade.
Cristina foi, também, autora e directora musical em várias peças de Teatro e durante nove anos foi maestrina do coral sinfónico “Choral Aeminium” com o qual cantou com várias orquestras portuguesas e internacionais, e é Maestrina do Coro D. Pedro de Cristo, desde 2009. É com ela e com a sua nova casa que mergulhamos nas memórias recentes de um Centro Cultural e pensamos no futuro da cena musical.

Se lhe pedisse para escolher uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(CTF):
Qualquer frequência abaixo de 20Hz, isto é, qualquer infrassom, vibração inaudível para os seres humanos, mas que pode ser bem incomodativa.  Os infrassons são produzidos, por exemplo, pelos terramotos e, como eles, podem ser prenúncio de destruição mais ou menos violenta, como foi este período pandémico, principalmente no domínio cultural. Estes últimos 12 meses, na análise dos acontecimentos que os rechearam e das decisões tomadas pelos nossos governantes sobre o assunto, foram especialmente destrutivos para todas as Artes do Espetáculo. Mas como sou otimista, espero sinceramente que as frequências comecem a aumentar rapidamente até aos 440Hz para ver se reafinamos e se as Artes retomam e reforçam o seu lugar na nossa vida.

Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente lhe era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-se?
(CTF):
Nem por isso… Embora os períodos de confinamento nos tenham deixado mais tempo “livre”, todas as nossas ações se complicaram. Como professora que sou – para além de programadora cultural – as aulas on-line exigiram um esforço e uma criatividade de preparação fora do habitual. A ausência das aulas práticas, insubstituíveis pela comunicação através do ecrã, prejudicou seriamente o ensino das artes performativas e obrigou a uma reviravolta no paradigma do ensino, obrigando os professores destas áreas a inventar estratégias que pudessem contribuir, pelo menos um pouco, para a diminuição daquele prejuízo. Claro que, na área da programação cultural, as coisas ficaram muito mais complicadas o que não contribuiu para haver tranquilidade e disponibilidade, mas antes um aumento de ansiedade e de preocupação, com compromissos a serem adiados ou cancelados e com a observação e consciência do prejuízo que esses adiamentos ou cancelamentos estavam a trazer aos próprios artistas, prestadores de serviço cultural em situação precária. Não tive muitos momentos tranquilos e a minha disponibilidade mental para a concretização de projetos foi muito menor do que em situação normal…

Como encarou e encara os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, se sentir o CCPS activo?
(CTF):
O primeiro confinamento apanhou-me, como a todos, desprevenida e um pouco atarantada – nem sequer pensava em concertos em streaming. Apostei essencialmente na aquisição de pequenos monólogos de teatro ou slideshows, que pudesse difundir na nas redes sociais do espaço enquanto este estava encerrado ao público. Também era uma forma de contribuir um pouco para ajudar os artistas a manter alguma atividade. No CCPS os concertos em streaming só se iniciaram no início do primeiro desconfinamento. Fomos o primeiro espaço, em Coimbra, a abrir portas aos músicos para pequenos concertos ao ar livre, no pátio do Centro Cultural, numa iniciativa em colaboração com o coletivo CAiS, o projeto “Sunset Week”. Nessa altura, devido às regras de distanciamento físico entre espetadores, o que implicava um menor número de presenças no espaço disponível, achei que a tecnologia podia ajudar a chegar os concertos a mais gente que, por falta de lugar ou por necessidade de isolamento, não se podia deslocar ao CCPS. Os sorrisos de prazer, quer dos músicos quer dos espetadores, durante esses concertos presenciais, foram momentos que nunca mais esquecerei. Também me marcaram profundamente algumas mensagens de agradecimento de quem viu os concertos através do Facebook. Na minha opinião, nunca os concertos em streaming poderão substituir o alive. No entanto, penso que poderão, com eficácia e valor, coadjuvar os concertos ao vivo, pelo menos enquanto a diminuição de espetadores nos espaços culturais for uma realidade.

Está a desenvolver programação musical para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, pode levantar a ponta do véu?
(CTF):
O Centro Cultural Penedo da Saudade pertence ao Politécnico de Coimbra, uma entidade formativa com grandes responsabilidades, em Coimbra, no que respeita à formação na área das Artes do Espetáculo – a nossa Escola Superior de Educação leciona cursos de Música e de Teatro. Assim, a minha filosofia de gestão do Centro Cultural, que refiro sempre como um espaço cultural de todos e para todos, inclui dar espaço aos artistas emergentes para apresentação e divulgação do seu trabalho. É neste âmbito que tenho boas relações com o coletivo CAiS e com a Blue House, que me têm feito algumas propostas muito interessantes de artistas pouco conhecidos, mas que têm demonstrado, na generalidade, grande valor.  Estes artistas terão sempre lugar no CCPS para apresentarem os seus projetos ou, mesmo, para fazerem residências artísticas. É só aparecerem.

Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar concertos a curto e longo prazo?
(CTF):
A agenda organiza-se com muitos sobressaltos, muito jogo de cintura, muita negociação, muitas dores de cabeça e muita ansiedade, para além de muita atenção às frequentes mudanças de regras definidas para os espaços culturais. Ultimamente tenho programado mais a curto prazo porque nunca sei o que vai acontecer a seguir e é muito injusto para os artistas programar e não conseguir levar a cabo…

Sente que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(CTF):
Por um lado, penso que houve uma chamada de atenção para o facto de as Artes Performativas são profissões e não hobbys. Foi dada alguma visibilidade aos problemas de todos os artistas e técnicos que ficaram, de repente, impossibilitados de trabalhar e, consequentemente, de pagar as suas contas. Foram inúmeros os que, podendo, voltaram a viver com os pais, por exemplo, por não terem forma de se autossustentarem… Não sei se toda a gente teve essa consciência pois falou-se mais nos restaurantes e no turismo, mas já estamos habituados, neste país, que a cultura não seja prioridade. Por outro lado, e no que diz respeito aos próprios artistas e técnicos, obrigados, muitos deles, a abraçar outras profissões temporariamente, penso que esta incerteza e precariedade no trabalho os possa ter feito pensar se não seria melhor transformar a sua profissão em hobby e tentar ganhar a vida de outra forma, pelo menos nos tempos mais próximos. Mas eu acredito na capacidade de resiliência de todos os artistas, habituados a lutar pelos seu ideais e pelos seus projetos num país em que, na maior parte das vezes, os governantes só conhecem os nomes dos músicos que lhes são “vendidos” pelos media e que nem sempre primam pela qualidade musical.

Produção. Criatividade. Palcos. Como é a sua rotina como Directora/ Programadora e como vê o futuro do sector da música a partir destas três palavras?
(CTF):
A capacidade criativa é própria de todos os que contactam de perto com as Artes, pelo que, enquanto houver Arte, a criatividade nunca desaparecerá. Produção, não é fácil nestes tempos de crise, mas esperemos que melhore… Palcos… qualquer espaço de apresentação performativa é, para mim, um palco. E o maior palco de todos é a própria vida, onde espero que as performances musicais estejam sempre presentes.

Quão desafiante se tornou este último ano no seu percurso enquanto Directora/Programadora? Como geriu a falta física dos seus pares, ao seu lado? O que mais mudou na sua perspectiva sobre o seu trabalho?
(CTF):
Os maiores desafios que senti ter enfrentado foram a incerteza do futuro a curto prazo no que diz respeito ao que se pode ou não fazer em cada semana e a inquietação de descobrir formas criativas de não parar e de contribuir para que os artistas também não parem de apresentar o seu trabalho. São dois desafios que não são fáceis, mas, se a vida não nos trouxesse desafios, era um marasmo. E eu gosto de me testar. •

+ Centro Cultural Penedo da Saudade
© Fotografia: DR.

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