Pertence ao ano de 1890 uma “Amendoeira em Flor” que Van Gogh faria o grande favor à humanidade de deixar eternizada num óleo sobre tela.
Todo/as nós, em idade já adulta, levamos um bebé ao colo: aquele/a que fomos um dia, de quem certamente não temos memória vívida, apenas subliminar e intersticial, e para cuja elucidação, de tal tempo, necessitamos de outras pessoas. A um bebé reservamos atenção e cuidado, protegendo-o: da queda, da dor, do frio, do calor excessivo, da maldade. Um bebé é sempre promessa, que se espraia inconfundivelmente no seu sorriso seráfico, nos seus lábios suavemente atentos, no seu olhar indagador: a sua linha do sorriso é sempre uma porta que se transpõe em direcção à beatitude, a algo que se alonga no nosso coração, que nos faz arquejar de esperança. Já o seu desespero, o seu sofrimento, ao invés, deixa-nos o coração apertado, tão apertado até apequenar-nos numa cela sem janelas e com o ar rarefeito. Não existe grau zero nesta história: chegamos sempre a meio, e todos, mas todos, e todas, nós, levamos um bebé ao colo. E não o atiramos com violência para cima das pessoas, não: existe uma certa lentidão na forma como se transfere; a não ser, claro, que se esteja a meio de uma situação de extremo perigo para o bebé e, numa atitude rápida e lúcida, atira-se, mas, lá está, é para que encontre protecção, para que possa ser novamente acolhido e colocado a salvo.
É nas crianças e nos idosos que o sorriso aflora com naturalidade à medida que caminhamos pelo mundo, porque são as idades em que parecem não existir alguns perigos, nomeadamente, os de se formular uma interpretação enviesada. E até se poderia conceber que a sociedade assenta no desejo do sorriso, por um lado, e, por outro, nas pulsões. Mas talvez a maldade, o mal, seja o esquecimento tão profundo desse bebé que fomos, somos e nos acompanha eternamente; pelo que deveríamos caminhar com cautela. A realidade não tem uma forma una, nem sequer um ângulo primordial que se sobreponha à paisagem que todo/as atravessamos. Estas cogitações em nada são devedoras de Jean-Jacques Rousseau e do seu “bom selvagem”. É necessária uma grande fé e coragem para, nas pessoas adultas, ver o bebé que fomos, somos e nos acompanha eternamente. Porque, secretamente, talvez se detecte um regozijo em abandonar, em magoar, em rejeitar, em fazer mal: tudo acções, e escolhas por vezes, erradas.
Quando Vincent Van Gogh pinta uma “Amendoeira em Flor” está a pintar precisamente a extrema delicadeza. A delicadeza é a grande sabedoria. Não é inteligente quem acossa, quem espeta ferros na carne do Outro, quem importuna, quem trata às três pancadas, quem trata mal. E não é de todo inteligente quem trata mal pessoas que usualmente se podem, supostamente, tratar mal: sim, porque existem aqueles seres humanos mais predispostos para serem maltratados, seja porque alguém conhecido o fez, tratou mal, seja porque estão expostos, de diversas formas. É confrangedora a mimetização do mal e do desdém. É preciso ser-se uma pessoa educada, ou seja, ter personalidade, para perceber que todo o ser humano é um pórtico para o sagrado.