José Rebola é viciado em música, doente assumido, crónico, já com diagnóstico decretado em adenda dos respeitados, aclamados e confirmados Anaquim. Não tem cura e para não se sentir só… Tenta deixar outros viciados no seu vício, o da música (dizem por aí que também é viciado em trocadilhos e piadas secas).
Músico de Coimbra, assumidamente apaixonado pela sua nobre profissão, é compositor e multi-instrumentista em parte e na outra parte, como dissemos, tenta viciar outros através do ensino da música; é, portanto e oficialmente, músico e lente de música. Saídos do estúdio já tem, como Anaquim, cinco álbuns editados, concertos que não cabem todos na memória sem rede e colaborações com músicos vários da nossa praça que já extravasam, há muito, duas mãos juntas.
De José Rebola, que nos tem vindo a preencher a Mutante através dos bem conhecidos Anaquim, sabemos e atestamos que é um mestre de solos com um dedilhar que nos troca as órbitas oculares e, também sabemos, que é mais que Anaquim e lente… Ele é The Speeding Bullets, banda que nos leva para um super rockabilly-psychobilly que só desejamos e ansiamos por um álbum para ver o camaleão Rebola num registo totalmente diferente e frenético. É com este apaixonado full-time pela música que hoje reflectimos sobre os seus últimos pandémicos meses, na sua vida de músico.
Se te pedisse para escolheres uma nota musical ou frequência hertziana ou um valor em decibéis para resumir estes últimos 12 meses, qual seria e porquê?
(JR): Seria a frequência de 432Hz. O padrão de afinação costuma ser a nota Lá, de 440Hz. No entanto, algumas pessoas afinam em valores próximos. Este valor está quase meio tom abaixo do que é comum. É uma nota que não está Lá. Está Lá perto… mas não é a mesma coisa. Parecemos ter um novo padrão, que soa bastante abaixo do que tínhamos. Mas pelo menos enquanto nos mantivermos afinados pode ser que preservemos alguma da harmonia…
Houve tranquilidade e disponibilidade – física e mental – para pôr em prática o que anteriormente te era quase impossível, como tirar projectos da gaveta ou reorganizar-te?
(JR): Houve algum tempo, na verdade. Mas esse tempo não veio associado à frescura mental e ao entusiasmo que é necessário para criar, pelo menos para mim. Senti isto, e comentei com algumas pessoas que sentiram o mesmo. As amarras físicas que se impuseram à sociedade acabaram por espartilhar também o meu processo criativo, que por norma se tenta centrar em coisas positivas… Fiquei com mais ideias guardadas para quando voltarmos a ter liberdade física, isso sim.
Como encaraste e encaras os concertos em streaming? São de alguma forma um motor para se manter uma certa actividade, te sentires activo?
(JR): Tudo o que é uma forma de os artistas partilharem os seus conteúdos eu encaro como uma coisa boa. Mas não é nem pode ser uma substituição da real thing. Enquanto performer, achei a acho a relação com as câmaras bastante mais difícil do que a relação com o público. Não te permite a bilateralidade que torna cada espectáculo único. Enquanto público, dificlmente enquadro as duas vertentes no mesmo patamar. Assistir a um espectáculo online é bom para te enriqueceres e estares a par do que ainda acontece à tua volta mas não tem o mesmo valor enquanto experiência.
Estás a desenvolver músicas/produções ou programação para a nova temporada pós-confinamento que se avizinha? Se sim, podes levantar a ponta do véu?
(JR): Estou a fazer planos, a coleccionar ideias e vontades, mas para já não passa disso. Neste momento, como disse, tenho o tempo mas não tenho o dínamo. Espero que depois não aconteça o inverso, e que alguns desses planos possam ver a luz do dia.
Como se organiza uma agenda com tantas incertezas e reagendamentos constantes? É exequível programar ensaios, concertos e tours a curto e longo prazo?
(JR): Neste momento organizar qualqer actividade ainda é um exercício de programação informática, cheio de if, parentesis e chavetas. É possível, mas é bastante complexo. A diferença mais traiçoeira é que as regras neste momento são dinâmicas, e é impossível prever com exactidão a sua evolução. Há sempre alguma contingência que não se contemplou. O melhor mesmo é pôr um hula hoop à nossa volta e começar a treinar o jogo de cintura.
Sentes que a paragem forçada da cena musical transformou o olhar do público e a mesma passou, finalmente, a ser mais olhada como profissão e não como hobby?
(JR): Sim, pode ter tido esse efeito colateral e sem dúvida que sublinhou a falta que a cultura nos faz. Mas o que mais evidenciou foi mesmo a precariedade de um sector que neste momento não parece ser auto-sustentável. E enquanto assim for mesmo alguns artistas vão tender a encarar a sua arte enquanto hobby pois ela não lhes permite estabilidade. Só com maior estabilidade podeos ter mais artistas dedicados a 100% e uma solidez maior da profissão.
Produção. Criatividade. Palcos. Como é a tua rotina de músico e como vês o futuro do teu sector a partir destas três palavras?
(JR): Eu divido muito o meu tempo enquanto músico e professor de música. Felizmente as aulas online permitiram que essa quadrante não parassse completamente e continua a ser uma parte importante do meu sustento e do meu tempo. Quanto ao resto, as capacidades tecnológicas que hoje temos permitem-nos criar e colaborar à distância, o que facilita a produção e a produtividade mesmo em confinamento ou semi-confinamento. Já quanto à criatividade, como disse antes, é difícil canalizá-la para o propósito que se quer quando os restantes estímulos não acompanham. Palcos acho que ainda me lembro do que são, é assim uma espécie de rectângulo elevado, certo? Os Anaquim tiveram uma boa experiência num evento-teste. Era bom continuar a refrescar a memória em breve…
Quão desafiante se tornou este último ano no teu percurso enquanto músico? Como geriste a falta física dos teus pares, ao teu lado? O que mais mudou na tua perspectiva sobre o teu trabalho?
(JR): A relação entre os músicos vive grandemente dos momentos não-musicais. Foi isso que mais senti falta. Sentares-te a um computador para ter uma reunião zoom com colegas de profissão pode ser um bom instrumento de trabalho, mas não acompanha a nível humano. Talvez seja aí que mais senti as diferenças. •