Dá-se início agora a uma colaboração entre mim, Cláudia Ferreira, através da escrita, e Manuela Brito, através da fotografia, em estreita ligação com o tempo: passado, presente e futuro.
Para escrever, agora, acerca de “As Meninas” de Velázquez será necessário, julgo, uma espécie de inconsciência e também de arrojo, partindo-se do pressuposto que escrever não é um mero relato, mas sim dar a ver. Ora: que mais se poderá dar a ver acerca de “As Meninas” de Velázquez? Mas: e se a pintura nunca tivesse sido, jamais, um exercício frontal, fenómeno perante o qual, em frente ao qual, nos dispomos? E se todas as pinturas, todos os quadros de todos os tempos, tivessem uma espécie de porta invisível que nos possibilita esgueirar e entrar? E se todas as pinturas, todos os quadros de todos os tempos, fossem decomponíveis em partes que se soltam e dançam entre nós? Na verdade, se hoje se instala alguma falta de imaginação, não deve ser unicamente imputada à ausência de formas sur-preendentes, ou a uma incapacidade de desentranhar no futuro hipóteses; também é devida, e muito, à consideração do passado como entidade petrificada. Cada obra de arte do passado é, não se duvide, uma lanterna à espera.
Amortalhar as obras de arte apenas contribuirá para enrijecer o presente: uma superfície enrijecida é agreste, porque rechaça. Portanto, deverá providenciar-se pela relação equilibrada entre dureza/macieza: não ser duro ao ponto de impossibilitar a permeabilidade; não ser macio ao ponto de fazer escorregar sem reter – deve deixar-se passar, por um lado, e deve estancar-se, por outro. E aqui está: o nosso tempo, actual, construiu, por um lado, um extenso e alto muro para o impedir de ver o “passado”; por outro, criou algo como uma máquina bem luzidia que está constantemente a deitar fora, tudo. Ao passado é usual ir, neste tempo actual, essencialmente como se fosse uma gesta ou como se representasse uma caixa de primeiros-socorros. A quem interessa que percamos a medida certa? A medida certa. Porque o paradigma actual é, claro, o excesso. Toda e cada palavra é invólucro da realidade: pensar o contrário não nos ajudará a encontrar as soluções para o mal-estar.
“As Meninas” de Velázquez é muito bem exemplificativo das camadas de tempo em que vivemos inevitavelmente submerso/as: fornece-nos uma visão da profundidade que nos envolve, que espessamos, que nos banha, que irradiamos. Porquê? Porque o espaço se propaga, ao desdobrar-se como um plissado, e vem também englobar-nos. Sim, talvez, para lá do drama que esta pintura retrata, nos mostre ostensivamente o tempo através da espacialidade tão marcada. Não me parece que exista a sobreposição de uma temporalidade, porque, ali, passado, presente, futuro, são consentâneos. Provenientes de 1656, “As Meninas”, pese embora, podem ser activadas agora como um análogo, que dissemina as semelhanças, do tempo. Por tal, tenhamos sempre bem presente que a rasura do passado nunca nos permitirá resolver as aporias da actualidade; mas não se trata de trazer o passado como gesta – o que o petrifica, nem esboroado como se fosse, então, essa caixa de primeiros-socorros – porque o dissolve e mascara. Trata-se, sim, de encontrar a medida certa.