Helena Almeida: a passagem

Durante vários anos mantive comigo a reprodução de uma “Pintura Habitada” de Helena Almeida, que me foi acompanhando à medida que mudava de casa, até permanecer por mais tempo em frente à porta da entrada. 

Encontrei a natureza na arte, ou melhor, passada com a/através da arte, mais especificamente: na companhia da obra de arte. Por tal, a desagregação a que vem sendo submetida a possibilidade de uma “obra” perturba-me. E não se trata de uma nostalgia em relação ao passado, mas de um certo luto relativamente às possibilidades de futuro. A qualidade de imersão que se reivindica hoje para a arte creio que é resultado daquela desagregação, com o que se perde a noção de núcleo, que considero essencial. Note-se que a arte sempre foi relação, com a obra como enclave: pois nela permanecem filamentos de quem a fez, mas simultaneamente as porosidades que a abrem à pessoa que a vê, sente, recebe. Assim, vejo o problema para a frente e não para trás, digamos assim. 

E se a imagem, assim que a olhamos, nos fizer cair? Como se fosse uma escarpa. As pinturas, os desenhos, as fotografias, todas habitadas, de Helena Almeida, fazem cair: fora e dentro. Existe uma teoria que entende a pintura como sendo sem volume, plana, atingindo-se o auge no século XX, com a demonstração cabal através do abstraccionismo americano. Mas, e se essa hipótese estiver equivocada? Ou seja, e se essa história for apenas a daqueles que queriam escrever sobre uma dialéctica temporal que não teve em conta a relação, por um lado, nem a obra por outro, que é o que estabelece, precisamente, os termos da relação? O que quero dizer é que a pintura sempre proporcionou, em potência, uma experiência imersiva e que a degradação das condições em que se dá hoje, pese embora simbolicamente mantenha o mercado a temperaturas altas, equivale à decadência que se endereça às coisas, na generalidade, bem como a uma descrença nos pressupostos do olhar.

Esquece-se, demasiadas vezes parece-me, a relação singular que cada pessoa no seu desamparo estabelece com um/a artista, ou seja, com a obra. Existe um rio de gente comum que corre paralelo aos megafones e aos holofotes. Existem feridas: nos olhos, nos corações, nas peles. E mesmo nessas enchentes de gente que saturam os museus, as feiras, sempre muito internacionais: quem garante que em alguém não se abre uma via de acesso aos olhos, ao coração, à pele? E essa via de acesso não pressupõe um sentimento religioso, mas antes, sim, uma comoção, assim como a vida quotidiana deve comover. A obra de arte não está a demonstrar: está à espera. Emmanuel Levinas até considerou tal espera, em mutismo, um desaforo, pelo que à arte reservou inicialmente uma desconfiança irredutível, que foi esmorecendo à medida que compreendia que a obra de arte está, nítida e obviamente, à espera, mas de ser dirigida. E são os mais humildes, os mais pobres, os mais despojados, por dentro, que a podem dirigir de facto. Os mais feridos.

Fotografia: Manuela Brito

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